A guerra comercial do hidrogênio

Professor Marcelo Coutinho, analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com

Nas últimas semanas foram publicados três importantes relatórios internacionais que convergem para a conclusão de que, finalmente, a indústria do hidrogênio verde está crescendo, e agora caminha para um verdadeiro boom econômico, ainda que alguns projetos específicos sejam abandonados por dificuldades de se viabilizarem. Os últimos relatórios do Fórum Econômico Mundial, do Hydrogen Council e da Agência internacional de Energia não deixam margem a dúvidas: a indústria do hidrogênio verde está acontecendo.

Os grupos de interesse contra o hidrogênio verde – temendo evidentemente que os antigos combustíveis sejam suplantados – ainda buscam confundir tomadores de decisão com meias verdades, mas agora sem efeito. Esses lobbies não conseguem mais parar o movimento rumo à hidrogenização de boa parte da indústria. Ainda há desafios pela frente, é claro, mas a tendência não pode ser desfigurada em nome de interesses emissores de carbono face a um aquecimento global que aterroriza cada vez mais a civilização. A transição energética é irreversível, e o H2V desempenha um papel central nela.

Na verdade, saímos neste momento da etapa do ceticismo auto-interessado para o início de uma guerra comercial pelo hidrogênio verde. Prova clara disso é que os europeus acabam de definir uma política protecionista para tentar barrar os eletrolisadores da China, que por sua vez tomou já a decisão de se consolidar como a maior potência mundial nesse setor. A Europa está perdendo a sua vantagem competitiva como pioneira do hidrogênio verde para a China e os EUA. O mercado do hidrogênio limpo cresce a uma taxa de 50% desde 2021, e ganhou impulso ainda maior no último ano. Porém, a capacidade instalada de eletrolisadores na Europa cresceu apenas três vezes. 60% da capacidade global de produção de eletrolisadores está mesmo na China.

A capacidade eletrolítica anunciada que atingiu decisão final de investimento (FID) é agora de 20 GW globalmente, dos quais 6,5 GW atingiram o FID apenas nos últimos 12 meses, segundo a Agência Internacional de Energia. A China reforçou a sua liderança, sendo responsável por mais de 40% dos FID globais. A posição de liderança da China é apoiada pela sua força na produção em massa de tecnologias de energia limpa. O que ocorreu no domínio chinês com a indústria eólica e solar, agora acontece também com o H2V. Vários grandes fabricantes chineses de painéis solares inclusive entraram no negócio de eletrolisadores a ponto de já conquistarem 1/3 dessa indústria no próprio país.

Em resposta à industrialização limpa chinesa, a Europa reagiu quadruplicando no último ano os FID para projetos de eletrólise, atingindo mais de 2 GW. Por sua vez, a Índia também entrou nessa disputa por meio de um único FID para 1,3 GW de capacidade eletrolítica. Os EUA ainda estão presos às eleições para deslancharem os seus projetos verdes. Por lá, a indústria do petróleo tentou o quanto pôde fazer com que o hidrogênio azul fosse aceito nas políticas de incentivos públicos, mas não obteve êxito. E uma provável vitória de Kamala Harris – que em matéria de transição energética é ainda mais enfática do que Joe Biden – deve fazer com que a indústria do hidrogênio verde viva uma era de ouro também nos EUA. A indústria americana já começou a se preparar para isso, a exemplo do crescimento das vendas de caminhões a hidrogênio, sobre o qual escrevemos na semana passada.

Nessa guerra comercial global pelo hidrogênio verde, o Brasil começa um pouco atrás, embora seja forte candidato a ser o maior ou o segundo maior produtor de H2V do planeta, conforme tivemos a oportunidade de analisar em outros trabalhos já publicados. A discussão de que o país não deva ser apenas um produtor de commodity está neste caso fora de lugar, primeiro porque demorou a fazer a regulamentação do setor de hidrogênio e ainda mostra sinais dúbios com relação aos combustíveis fósseis e biocombustíveis, estes, sim, essencialmente extrativistas e atrelados a commodities. E em segundo lugar, não podemos esquecer que a produção de H2V é em si industrialização. O melhor que o Brasil deveria fazer agora é se concentrar na produção desse novo bem industrial, em vez de se perder em uma falsa rivalidade entre exportação versus produção para uso local.

Um importante marco nesse novo capítulo da história que vai se abrindo é o fim do uso do carvão na Inglaterra. A primeira termelétrica do mundo foi aberta em Londres em 1882, e a última a ser fechada no país é agora em 2024. A revolução industrial inglesa foi baseada no carvão, e agora o fechamento da última usina de carvão por lá é algo que dá muito o tom dos dias de hoje. Outros países vão demorar ainda para completar essa transição, mas ela já começou em toda parte. Ainda restam 9 mil centrais a carvão no mundo, algumas delas no Brasil, que deveria ter sido o primeiro a aboli-las. Perdemos mais essa oportunidade histórica por pressão de grupinhos de interesses. Na descarbonização da indústria, a única forma efetiva de substituir o carvão é com o hidrogênio verde. Siderurgia verde de verdade, só com H2V.

A China e a Índia ainda dependem muito do carvão. E ao mesmo tempo esses dois países não se destacam pela produção mundial de petróleo e gás natural. Essas devem ser fortes razões adicionais para que os dois países acelerem uma transição direto para o hidrogênio verde, que não passe antes pelo gás como aconteceu com os EUA. A empresas de energia chinesas estão entre as maiores do mundo interessadas em depender menos dos combustíveis fósseis importados de outros países, pois elas se especializaram sobretudo no refino, e não na produção do petróleo. O fim da era do petróleo beneficia muito a China. Portanto, quanto mais a indústria do hidrogênio verde avançar, melhor para todos, mas principalmente para as potências asiáticas. A guerra comercial global tem definitivamente no H2V um capítulo muito especial.

Publicado em 07/10/2024

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