A gasolina sintética é neutra, o etanol não.

Professor Marcelo Coutinho, analista sênior de hidrogênio prof.marcelo.coutinho@gmail.com

Há uma inverdade espalhada em alguns meios de que o Brasil não precisa da gasolina sintética porque o país já tem o etanol. Isso não corresponde à verdade de várias formas, e buscaremos explicar uma a uma neste texto, que se faz hoje extremamente útil.

Primeiro, o etanol não é carbono neutro, e a gasolina sintética é carbono neutra. O etanol emite muito carbono na produção e também no seu uso, e nem todo carbono emitido é reabsorvido por novas plantas. Já a gasolina sintética usa carbono reciclado (capturado).

O etanol emite carbono quando desmata para plantar cana ou milho, quando seus tratores trabalham a terra, semeiam e colhem, quando os caminhões que transportam o etanol são a diesel e quando usam fertilizantes. Tudo isso em abundância. O mais grave sem dúvida alguma é o avanço da fronteira agrícola.

O milho e a cana avançam sobre matas virgens, de pecuária e outras culturas. Quando avança sobre matas virgens destrói florestas diretamente, e quando avança sobre pecuária e outras culturas destrói florestas indiretamente porque levam estes a destruírem florestas em busca de novas terras. Basta ver as publicações do Observatório do Clima para comprovar isso, ou qualquer outro relatório com credibilidade.

A mudança no uso da terra é o principal vilão nas emissões de carbono no Brasil. Todos os levantamentos nacionais e internacionais atestam isso. Milho e cana também estão juntos nessa mudança do uso da terra, assim como a soja e outras na fabricação dos biocombustíveis em geral.

Segundo, estudos científicos já comprovam que as plantas estão tendo mais dificuldade de absorver o carbono, então não é garantia nenhuma de que o carbono que o etanol emite está sendo mesmo reabsorvido depois. A fotossíntese está sendo afetada pelo aquecimento do planeta e, sobretudo, quanto mais você usa o etanol mais ele se expande sobre novas terras. É uma matemática de carbono, portanto, que nunca fecha.

Terceiro, há um inegável histórico que associa o etanol às queimadas. Mesmo que atualmente os produtores estejam tomando mais cuidado, não impede o fenômeno de acontecer como ficou mais uma vez provado este ano. Todo o mundo viu as fumaças destruindo lavouras e matas virgens no país. Uma fumaça que tomou conta do céu brasileiro e adoeceu muita gente.

Ou seja, quando o etanol não desmata na entrada, queima na saída. De uma forma ou de ambas, emite muito carbono. Uma plantação que pegou fogo emite toneladas de dióxido de carbono na atmosfera da própria plantação em chamas e de áreas virgens em todo o entorno que acabam sendo fortemente atingidas.

Num cálculo apenas pedagógico para todos entenderem, imagine que se emita 3 unidades de CO2 quando desmata, mais 2 de CO2 quando pega fogo, mais 3 de CO2 com tratores, caminhões e fertilizantes na plantação, e finalmente 2 de CO2 na queima do combustível em si quando usado, totalizando 10 de CO2 ao todo, isso sem considerar as máquinas e demais materiais utilizados na produção. Agora subtraia isso por 2 de CO2 reabsorvido com uma nova plantação. 10 – 2 = 8 CO2 extra emitidos.

Se as florestas fossem todas repostas, mesmo que anos depois, até que o dano seria menor, mas assim seria grande. Mas todos sabemos o que está acontecendo com as florestas brasileiras há tempos. Fica assim bastante claro a falácia de que o etanol ajuda a combater as mudanças climáticas, mesmo sem considerar que a fotossíntese também está sendo prejudicada. Nem os 2 de CO2 queimados nos veículos estão sendo verdadeiramente reabsorvidos.

Quarto, as plantações estão degradando o solo e sobreaquecendo regiões inteiras. O cultivo está aumentando o calor e a seca de duas formas, ao desidratar o solo, arruinando rios e aquíferos, e principalmente ao acabar com os refletores naturais que são as vegetações. Numa área de vegetação natural, o sol bate, mas é refletido em grande parte pela copa das árvores e arbustos, preservando assim o solo. Além disso, a transpiração das árvores umidifica o ar naturalmente, fazendo chover.

Já numa área desmatada, com plantações como a soja e o milho, o sol bate e atinge direto o solo por mais tempo no ano, sobretudo na entressafra. Esse solo já degradado fica ainda pior porque o sol, sem a cobertura das árvores, retira toda a umidade da superfície e do ar. Conclusão, essa área fica progressivamente mais quente e seca. É o processo de aridez e desertificação que está acontecendo no país promovido não só pelos combustíveis fósseis, mas também pelos biocombustíveis.

Tudo isso foi responsável pelo que aconteceu na catástrofe no Rio Grande do Sul. Os bolsões de calor, desenvolvidos nas regiões mais quentes e secas por conta do processo explicado acima, represa a chuva que vem do Sul e faz o mundo desabar na cabeça dos gaúchos. Os próprios agricultores saem prejudicados, assim como a seguradoras. Não há como o etanol ser algo bom se ele próprio agrava muito a situação e ao mesmo tempo é impactado negativamente pelo superaquecimento.

Quinto, expandir ainda mais o cultivo de cana e milho para fazer o etanol concorre com outros alimentos. Essa é outra matemática que não fecha. Muita gente no mundo passando fome, foi objeto inclusive do G20 uma política para acabar com a fome, e mesmo assim se insiste em usar a terra com plantações para um combustível que desloca/acaba com plantações para alimentos como o arroz, que temos que acabar importando até no Brasil.

O G20 no Rio de Janeiro em 2024 reafirmou mais uma fracassada tentativa de o Brasil fazer do etanol uma estratégia de transição energética. O mundo sabe muito bem o que o etanol faz com o solo, com os biomas, com o clima e com outras culturas de alimentos. A Europa inclusive tem uma lei específica que exclui os combustíveis biológicos da transição energética. O lobby do etanol tem limites internacionais científicos, climáticos, legais e de segurança alimentar.

Sexto, por tudo que foi aqui já didaticamente esclarecido, o etanol também não pode oferecer nenhuma solução para descarbonizar outros escopos da cadeia de produção industrial. Isto é, o etanol não tem como descarbonizar, por exemplo, a máquina que tritura a cana ou que purifica o combustível. E muito menos o aço com o qual é feito todos os veículos. Vai sempre depender de mais emissões indiretas para continuar produzindo, além das emissões diretas. Já a gasolina verde pode sim, descarbonizar também outros ramos da indústria.

O combustível sintético é feito com hidrogênio verde e carbono capturado, ou seja, carbono que já foi emitido e que o combustível sintético não teve nada a ver com a sua emissão. A matéria prima da gasolina sintética, o H2V, é não só muito apropriada para descarbonizar também toda a indústria, desde a fabricação dos carros até fertilizantes, como é o mais recomendável. O aço verde só pode ser feito com hidrogênio verde. Um fertilizante zero carbono, também só com H2V. Portanto, ao se produzir combustível sintético cada vez mais também precisaremos produzir H2V que, por sua vez, serve a diversos setores da economia, algo que o etanol sequer pode sonhar em fazer um dia.

A indústria do combustível sintético está toda ela inserida na transição energética ao contrário do etanol. Com o hidrogênio verde que se faz a gasolina verde também se faz o diesel verde, a querosene de avião verde, o metanol verde, a amônia verde, o cimento verde, a central elétrica verde, o alumínio verde e assim por diante. Então, ao contrário do etanol que estimula a degradação, o combustível sintético estimula a preservação.

Sétimo, para terminar, toda a água que é utilizada para fazer o hidrogênio verde, com o qual se faz a gasolina verde, volta imediatamente para os rios e aquíferos quando usada pelos veículos, siderurgias e todos os parques industriais. Isso acontece porque todo hidrogênio emitido/queimado se junta com o oxigênio automaticamente e vira água de novo, num ciclo perfeito. Nada disse encontra correspondente no etanol.

Portanto, o combustível sintetizado é muito, muito, muito superior ao etanol em vários sentidos. E quanto mais for fabricado, mais barato ficará e mais bem fará ao meio ambiente como um todo, ao contrário do etanol.

Existem muitas outras razões pelas quais o sintético é melhor que o etanol – eficiência energética, performance, autonomia, manutenção, duração de peças, blindagem, infraestrutura, seguros, facilidades, costumes, geração de empregos, agregação de valor industrial, segurança e estabilidade no abastecimento – mas penso já ter sido o suficiente aqui para se entender que o combustível do futuro é o hidrogênio verde e seus derivados, nos quais os combustíveis sintéticos se encontram. Fora isso é jogo de lobby sem argumentos verdadeiros.

Publicado em 9/12/2024

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