Marcelo Coutinho, Professor Doutor e Coordenador do curso de hidrogênio verde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.
Quando o assunto é energia, uma palavra se destaca: responsabilidade. Sem energia, pessoas morrem, crianças perdem aula, produtos estragam, indústrias fecham e assim por diante, um verdadeiro caos. Portanto, é preciso muita responsabilidade para garantir o fornecimento de energia, mas uma energia que não polua demais, que não mate pessoas, destrua ecossistemas, não gere mudanças climáticas que fecham escolas, hospitais, fábricas e ruas com alagamentos, inundações ou um calor mortal que geram caos ainda maior. A mesma responsabilidade que se exige para não faltar energia deve ser também exigida para não emitir ainda mais carbono na atmosfera que agrava o efeito estufa, fazendo o mundo desmoronar.
É com muita responsabilidade que deve ser feita a discussão sobre as usinas termoelétricas a carvão e gás natural. Eventos recentes fizeram de novo elas serem religadas no Brasil. Quando os rios secaram na Amazônia, e quando o calor tomou o Rio de Janeiro e São Paulo, ligaram as térmicas inclusive a diesel por razões de segurança emergencial. De fato, não havia o que fazer senão ligá-las para garantir o bem-estar da população. Mas aí residem dois pontos que precisam ser bem esclarecidos. Primeiro, são justamente esses combustíveis fósseis os irresponsáveis por gerar o aquecimento do planeta, levando a tais eventos climáticos extremos crescentes. Segundo, há outras formas de se combater o problema no longo prazo. E sobre isso falaremos agora.
Antes de tudo, um fato: o Brasil tem sobreoferta de energia elétrica renovável, isto é, tem energia excedente, não precisa de térmicas extras, a não ser em momentos excepcionais de crise. O país teve dois tipos de apagões em 2023, um por excesso de energia eólica no meio do ano – isso mesmo, excesso -, outro por problemas climáticos, com tempestades e uma onda de calor terrível. Em casos extraordinários foram ligadas as termoelétricas. A conclusão óbvia é que, sim, foi bom tê-las de reserva agora, mas não precisamos construir outras ou que essas novas sejam alimentadas por combustíveis fósseis porque o abastecimento com usinas flexíveis é esporádico, e acaba contribuindo para agravar o problema dos apagões e do meio ambiente cada vez mais.
A atitude verdadeiramente responsável é aquela que busca quebrar o círculo vicioso energia-clima: emissão de carbono estressa eventos climáticos que geram apagões que nos levam a emitir mais carbono por meio das termoelétricas. Mas há uma alternativa às térmicas tradicionais no longo prazo? Sim, o hidrogênio verde (H2V), ou o hidrogênio inorgânico renovável (HIR). Essa nova forma de energia resolve de uma só vez o problema de intermitência, armazenamento e transporte das fontes primárias renováveis. O problema com as eólicas e solares é que elas, sobretudo as fotovoltaicas, não fornecem energia com a mesma potência e constância necessária para garantir segurança energética. E muito menos podiam até então ser armazenadas para alocação emergencial. Agora, por meio do H2V, elas podem.
O hidrogênio inorgânico renovável nada mais é do que uma forma muito inteligente e versátil de guardar a energia hiperbólica proveniente dos ventos e do sol, que de outra forma são simplesmente desperdiçados. Isso é importante ser sublinhado e repetido porque se diz muitas inverdades por aí tentando difamar o hidrogênio eletrolítico. A verdade é que sem o H2V (ou HIR), 98% do potencial eólico é desperdiçado, considerando offshore e onshore. Hoje usamos apenas 2% desse potencial e já há produção em excesso em boa parte do ano em torno de 20%. Portanto, precisamos do hidrogênio verde para reservar toda essa energia excedente para picos de demanda no país e escassez periódica das fontes primárias. Ou seja, o H2V é absolutamente estratégico como fonte reguladora do abastecimento de energia renovável no país.
Em vez de construir mais termoelétricas a carvão e gás natural que vão agravar o problema climático e gerar mais apagões, devemos produzir o hidrogênio verde. A única solução responsável de longo prazo é essa. As soluções de curto prazo são circunstancialmente necessárias, mas tornam a crise crônica. Grosso modo, é como alguns anticongestionantes nasais que causavam a deterioração das narinas. Desentupiam, aliviando o momento complicado, mas também viciavam e arruinavam o nariz para sempre até desenvolver coisas muito piores. Isto é, as termoelétricas tradicionais ajudam a evitar apagões, mas contribuem para a deterioração do clima que torna a pressão sobre o sistema elétrico cada vez maior, aumentando as chances de apagões mais sérios.
Infelizmente, as usinas termoelétricas a carvão ou gás natural ainda são necessárias hoje, mas elas devem ser progressivamente substituídas por uma fonte limpa. As renováveis sozinhas resolvem em momentos de pico da demanda? Sim, definitivamente resolverão se houver hidrogênio verde armazenado. A demanda excessiva por energia elétrica em função de qualquer motivo pode ser atendida pela liberação das reservas estratégicas de H2V no sistema. Rio de Janeiro, São Paulo ou o Amazonas está num calor terrível e o ar condicionado precisa de energia? Abasteçam a rede elétrica de hidrogênio inorgânico renovável, e pronto, a crise foi evitada ou atenuada tal como acontece com as térmicas tradicionais, mas sem poluir e sem desperdiçar fontes primárias abundantes.
Isso não significa que devamos fechar as termoelétricas imediatamente. Significa apenas que já deveríamos ter começado a construir usinas de hidrogênio, e não de carvão ou gás natural. É uma irresponsabilidade com a segurança de todos continuar ampliando a rede de térmicas em vez de ampliar a de hidrogênio genuinamente verde. Os argumentos a favor das térmicas não se sustentam mais com advento de novas tecnologias. Parece ser uma coisa atrasada defendendo interesses atrasados, ou pelo menos uma relutância pouco racional em compreender o papel chave que o hidrogênio desempenha agora no quebra cabeça da transição energética global ao superar o problema clássico da intermitência das renováveis.
Outro argumento falacioso é o de que o hidrogênio verde é uma solução energética cara e ineficiente. Em primeiro lugar, toda energia ou mesmo qualquer tecnologia nova quando surge é mesmo cara e depois vai barateando. O barril de petróleo já valeu mais mil dólares no passado remoto! E hoje vale menos que 100 dólares. Tal processo de barateamento vai ocorrer também com o H2V porque ele é como qualquer outra nova tecnologia, só que 100% livre de emissões de carbono. Quanto mais se produzir esse novo combustível, mais barato ele ficará por causa de um elemento básico em economia chamado ganho de escala, mas que seus críticos propositadamente se esquecem.
Em segundo lugar, quanto à eficiência, não há outra solução senão o hidrogênio verde nos casos em que ele se aplica. Então, para se dizer que existem outras opções mais eficientes que o H2V é preciso antes dizer quais são essas ditas opções. Só que elas não existem, o que torna esse argumento malicioso. Não tem como descarbonizar a indústria ou armazenar energia limpa em grande escala sem o hidrogênio verde. Baterias não se aplicam à geração de energia pública, assim como não se aplicam ao aço verde, nem aos aviões, trens e navios cargueiros, fertilizantes, alumínio verde, e assim por diante. Baterias são boas para veículos pequenos, para carros elétricos, não substituem o H2V em vários outros setores e veículos. Logo, não há outra forma de armazenar a energia excedente e virtualmente infinita dos ventos e do sol que não seja pelo hidrogênio verde. Nesse sentido, o H2V não é mais nem menos eficiente. É a única forma de aproveitar todo esse potencial energético.
Trata-se de uma escolha entre os eventuais limites do H2V, ou os eventos climáticos cada vez mais extremos. E antes que alguém lembre dos biocombustíveis, é importante que se diga que eles poderão servir de reserva para as térmicas, sim, em cidades como São Paulo, mas de forma isolada e pontual, pois além de não aproveitarem nada o potencial eólico e solar do país, num monumental desperdício do que a natureza nos deu, ainda por cima desmatam. Biocombustíveis sãos orgânicos. Emitem carbono. E para aumentar sua produção, têm que desmatar direta ou indiretamente, seja com queimadas, degradação do solo e derrubando árvores para plantar monoculturas, seja empurrando as outras culturas e a pecuária para cima dos biomas, como têm acontecido ao longo de décadas, ou ainda também precipitando aceleradamente degradações naturais e emissões de metano a partir de biodigestores.
Dito isso, e dentro do que foi esclarecido nos parágrafos anteriores de que não há outra alternativa limpa, a eficiência energética do hidrogênio verde é hoje de 67%, o que é bastante satisfatório, embora ainda possa ser melhorado. Pesquisas já bem adiantadas podem levar essa eficiência a mais de 80% dentro de pouco tempo, sobretudo acelerando o processo de oxidação com melhores catalisadores e eletrólitos, pois a etapa de redução do lado do catodo que gera o hidrogênio já chega a esse percentual, mas ainda é retardada pelo anodo, o polo positivo da eletrólise que produz oxigênio. De toda forma, 67% ou 82% são valores absolutos entre o bom e o ótimo em termos energéticos que viabilizam o H2V sem sombra de dúvidas, como atestam todas as grandes consultorias internacionais, ainda mais se considerarmos a ineficiência que representa desperdiçar 98% das suas fontes primárias. Mais uma vez, se não houver a produção de hidrogênio inorgânico renovável, o vento e o sol vão continuar lá subaproveitados.
Em termos práticos, por serem intermitentes, a eólica e a solar não são energias que têm a característica que as térmicas possuem de lidar melhor com os picos de demanda, isto é, aquelas poucas horas do dia com maior calor em que se liga mais o ar condicionado e outros aparelhos refrigeradores. O hidrogênio resolve esse problema da intermitência entre as renováveis, e pode ser inclusive utilizado pelas térmicas no lugar do carvão e do gás natural, atendendo a esses picos de energia. Cerca de 10 gigawatts são necessários de reserva técnica para esses momentos mais críticos de calor, o que poderá ser perfeitamente atendido pelo H2V quando esse estiver em produção industrial. 10 GW é um pouco mais de 300 mil toneladas de hidrogênio, perfeitamente armazenáveis em diferentes pontos do país.
A reserva técnica de hidrogênio verde além de resolver o problema da intermitência e de suprir energia elétrica em momentos de pico, também será útil para diminuir a volatilidade dos preços. Em novembro, por causa da onda de calor, o preço base de energia no Brasil pulou de 68 reais para mais de 400 reais o PLD, preço de liquidação de diferenças. Já houve momentos em que o PLD saltou para R$ 514 MWh como em julho de 2017, o que mais uma vez demonstra que as térmicas nunca ajudaram a regular bem esses preços, o que é péssimo para os consumidores. A solução para a confiabilidade do sistema elétrico brasileiro passa, portanto, pelo hidrogênio verde, utilizando inclusive boa parte da infraestrutura das térmicas tradicionais. Por fim, é importante também que se diga que as linhas de transmissão não são boas soluções a longuíssimas distâncias porque encarecem a energia demais, geram muito desperdício a cada subestação, são vulneráveis a desastres ambientais, e não resolvem as intermitências das renováveis. A solução de novo é o H2V.
Para usar a figura de linguagem comum entre alguns analistas, a “Dona Maria” e “Seu José” precisam de energia na tomada, mas gostariam antes que suas casas não fossem destruídas pelas inundações, e que não morressem ao voltar do trabalho por causa de alguma enxurrada. A população não quer pagar conta de luz mais cara por causa do ventilador que é obrigada a usar em função do calor atípico. Quer segurança na luz com cuidados verdadeiros. Os apagões decorrentes de tempestades ou secas de reservatórios hidroelétricos devem de agora em diante ocorrer com mais frequência e prejudicar a população mais até do que os picos de luz nas horas de maior demanda, embora esses também devam aumentar muito. Logo, é hipocrisia dizer que o país continuará precisando das térmicas a carvão e gás natural para garantir confiabilidade e acesso à energia. O Brasil, os brasileiros e o mundo todo precisam mesmo é de transição energética sustentável.
Publicado em 28/11/2023.