Marcelo Coutinho, Professor da UFRJ e analista de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com
Numa análise prospectiva, o ano de 2023 não terminou bem para os combustíveis fósseis, com as resoluções da conferência internacional do clima, COP28, que passam maior segurança com relação à transição energética. Ela vai acontecer, a despeito dos fortes lobbies em contrário. Na verdade, a transição é inevitável por razões climáticas objetivas que vão muito além dos grupos de pressão. Ela já começou e agora deve ganhar maior velocidade. 2023 foi o ano mais quente na histórica registrada. Somos todos nós testemunhas do colapso climático do planeta em tempo real.
Por sua vez, olhando para o presente, o que vemos é um progressivo aumento de estoques neste início de 2024. Aumentou bastante o estoque de gasolina nos EUA, e logo em seguida verificou-se que também subiu surpreendentemente o estoque de petróleo bruto, mesmo com o problema no Mar Vermelho. Era de se esperar que o conflito na região fizesse os estoques caírem forte por causa da interrupção repentina do abastecimento na principal rota marítima do comércio global. Mas aconteceu justamente o oposto.
Os EUA estão com sua economia bem aquecida, como comprova os dados de pleno emprego e salário no país. Portanto, o aumento dos estoques de petróleo no país só pode mesmo ser explicado pelo início da transição energética. Caiu a demanda pela gasolina sobretudo. E a expectativa é que este ano seja mesmo o início do declínio desse combustível. A propósito, em seu último relatório, a S&P Global afirmou que a gasolina e o carvão já atingiram o topo e começarão a declinar em 2024.
Os carros elétricos (EV) estão vendendo muito. Tanto a Tesla quanto a BYD bateram recordes em 2023 e superaram definitivamente as fabricantes tradicionais, abrindo uma ferrenha disputa por mercados que deve se aprofundar de agora em diante. No Brasil, a venda dos EVs ainda é pequena, mas aumentou 91% no ano passado. As políticas de abandono dos carros movidos a combustíveis emissores de carbono na Europa e no EUA já estão surtindo seus primeiros efeitos, e a China agora proibiu o licenciamento de novos carros a combustão.
Se há clareza quanto à queda da gasolina, o mesmo não se pode dizer sobre o carvão. De fato, existem vetores que apontam para sua redução nos EUA, Europa e até mesmo na China, o principal problema. Porém, a Índia tem planos de ampliar o uso do carvão no país, o que deve retardar o declínio global dessa fonte de energia fóssil. Se a transição na China for para valer como agora é anunciado e acontecer mais rapidamente do que os planos indianos de expansão, então é possível também que o carvão comece a cair em 2024. Mas isso não é tão certo quanto a diminuição da gasolina. Em 2023, o uso de carvão bateu o recorde de 8,5 bilhões de toneladas.
Os preços do barril de petróleo estão oscilando muito com clara tendência de queda, e a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) não tem conseguido mais sustentar o mercado. Na verdade, a OPEP virou fonte de instabilidade contra si mesma, podendo inclusive acelerar o declínio do combustível fóssil. Semanas depois de dizer que traria estabilidade ao mercado de petróleo e mostrar suposta coesão interna, a organização perdeu um dos seus membros, Angola (pode perder outros), e a própria Arábia Saudita cortou os preços de venda para todas as regiões, sabotando, assim, o corte de produção que ela mesmo liderou.
A OPEP vem sendo disfuncional de uma maneira como nunca foi. Há sinais concretos de que a organização tem dificuldade crescente de manter sua política de restrição de oferta, e provas de que estas restrições não têm conseguido valorizar o barril de petróleo. Os mercados não estão reagindo como esperado pelos países produtores. E para piorar os estados membros acirram disputas entre si, sabotando-se mutuamente. Uma demonstração disso é a Venezuela roubando fatias do mercado chinês contra o Irã, que assiste a uma queda vertiginosa de suas vendas. Do mesmo modo, a Arábia Saudita reafirmou seu desejo em estabelecer uma cooperação com Israel após o conflito em Gaza, o que fere os interesses do governo iraniano.
A OPEP mostra fragmentação e instabilidade à medida que avança a transição energética. Seus estados membros cortaram a produção sequencialmente, mas empresas de outros países como os EUA e o Brasil ocuparam os espaços de demanda então deixados. Essa situação parece chegar a um limite neste início de ano, e mesmo a Petrobrás que mais tirou vantagem da disfuncionalidade da OPEP deve agora assistir uma queda em sua rentabilidade e no aumento da produção porque o mercado de petróleo como um todo entrou em declínio. Para manter os ganhos do passado, a Petrobrás tem mantido os preços nacionais acima dos internacionais.
Todo esse cenário de deterioração do mercado de petróleo e enfraquecimento da OPEP representa uma ótima oportunidade para o advento da indústria do hidrogênio verde, um substituo direto, amplo e limpo aos combustíveis fósseis. A transição energética parece escapar às mãos das companhias de petróleo, ao menos o andamento das coisas foge dos seus planos iniciais. A produção de hidrogênio deve ser bem mais descentralizada do que a de petróleo, embora tenham candidatos a protagonistas, sobretudo no Brasil. O Maranhão tem todas as condições para se tornar a Arábia Saudita do novo combustível e insumo industrial. Empresas como a Petrobrás podem descobrir logo isso, ou outras tomarão a sua frente. Seja olhando para o presente imediato ou para o longo prazo, o cenário é mesmo de mudança.