Caminhões a hidrogênio

Marcelo Coutinho, professor da UFRJ e analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com

Os caminhões rodoviários a diesel estão entre os veículos que mais poluem, e têm encontrado dificuldade para a eletrificação com baterias por causa do peso, autonomia e da própria natureza das suas funções básicas. São veículos que andam muito, a longas distâncias, com uma rotina de trabalho bastante elevada. Cada minuto parado de um caminhão significa perda de dinheiro para o seu proprietário. É um veículo que precisa rodar, e rodar muito, levando nas costas carga com dezenas de toneladas, passando por todo tipo de clima e relevo.

Existem caminhões elétricos, mas por causa do regime de trabalho desses veículos, as baterias têm mostrado grandes limites. Os caminhoneiros dizem que mal conseguem percorrer 240 quilômetros com elas. Geralmente não entregam o que prometem, e agora no inverno do hemisfério norte, elas estão literalmente deixando na mão os motoristas porque perdem muita eficiência a ponto de quase pararem algumas vezes na estrada, embora seja igualmente verdade que os caminhões a combustão também estão enfrentando dificuldades. Se o terreno for inclinado, pior ainda, o que leva ao encarecimento do frete e a prejuízos das transportadoras. Além disso, um caminhão elétrico a bateria precisa de horas para recarregar. Preciosas horas.

“Os caminhoneiros dizem que os caminhões elétricos à bateria são bons para viagens curtas. Mas eles estão achando menos úteis para viagens mais longas com mais de 160 quilômetros devido o alcance limitado das baterias e às horas necessárias para recarregar” (WSJ)

Um caminhoneiro geralmente dirige o dia inteiro e para à noite para dormir na própria boleia, e segue viagem no dia seguinte. É quando aproveita para reabastecer o tanque de diesel. Com troca de motorista, o caminhão chega a rodar 24 horas por dia. Um truck elétrico a bateria não consegue andar o dia inteiro. Não tem essa autonomia. Precisa interromper por horas o seu trabalho duas ou até três vezes mais, atrasando entregas e diminuindo sua viabilidade econômica. Se ele ainda por cima encontrar uma fila de caminhões no posto ou se o tempo esfriar e o motor não ligar, aí tudo fica ainda mais difícil. Ele olha para o seu colega com caminhão a diesel do lado ganhando mais dinheiro, e se pergunta: por que eu fiz isso?

Ele fez isso porque precisará fazer, mais cedo do que tarde. Há um limite já estabelecido para os caminhões a diesel rodarem nos EUA, Europa, Japão, Canadá e China, entre outros. Os caminhões estão em transição energética, e não há mais volta. Depois de 2035 a venda de veículos a diesel e gasolina será proibida, e é claro que o mercado já começou a se ajustar a isso. Por lei, daqui a seis anos, as fabricantes precisarão já ter mais da metade das vendas fora dos combustíveis fósseis. E algumas gigantes como a Amazon irão banir esse tipo de transporte bem antes disso, exigindo descarbonização robusta. Não é uma tendência, mas um fato inexorável, queiram ou não aquelas pessoas mais resistentes à mudança.

Na prática, veremos por mais dois ou três anos apenas os últimos caminhões a diesel novos sendo vendidos em boa parte do mundo. O caminhão de uma rede roda cerca de 8 anos até ser revendido. Essas redes todas não vão mais comprar caminhões a diesel depois de 2026/2027 com o banimento do combustível tão próximo. Vão se depreciar rapidamente e perder clientela, cada vez mais exigentes com relação à questão ambiental. A Coca Cola, por exemplo, já encomendou dezenas de caminhões da Tesla, e muitos fornecedores na China só trabalham com elétricos. A Pepsi, por sua vez, encomendou caminhões a hidrogênio da australiana Taurus com capacidade de transportar até 70 toneladas. Então, o caminhoneiro que comprou o seu, olha para o do lado e se pergunta por que fez isso, mas logo se recorda do motivo.

Os caminhões elétricos têm vantagens também. Os gastos com manutenção caem mais de 3 vezes em relação aos tradicionais, e com consumo cai mais de 5 vezes. Isso é algo que pesa muito favoravelmente aos elétricos. O caminhoneiro olha para o lado e também vê um monte de caminhões a diesel quebrados na estrada porque tem muito mais peças pequenas. Mas isso não é suficiente. A questão da autonomia, resistência e da agilidade de abastecimento acaba sendo um empecilho para se adotar um veículo de trabalho pesado movido a bateria, e ainda por cima caro de comprar, embora barato de andar. E depois dessas nevascas com as mudanças climáticas gerando cada vez mais eventos extremos, o elétrico para caminhões do tipo truck subiu no telhado.

A solução já existe e deve dominar o mercado de caminhões nos próximos anos. Nove em cada dez fabricantes concordam que a solução para o setor é ter caminhões a hidrogênio. A indústria do hidrogênio verde inclusive já espera que a venda desses novos caminhões seja o que vai viabilizar seus empreendimentos em escala global. O caminhão com célula de hidrogênio tem todas as qualidades de um elétrico a bateria, e ao mesmo tempo resolve todos os seus problemas operacionais. Tem autonomia e rapidez de abastecimento do diesel, tem mais potência e torque, não perde eficiência no frio, nem com mais carga ou subidas, não é corrosivo nem tem cheiro, e tem a economia de combustível e a baixa manutenção de um elétrico, além de não poluir e ser também silencioso. Ou seja, o melhor dos dois mundos num só caminhão.

O caminhão com célula de hidrogênio tem todas as qualidades de um elétrico a bateria, e ao mesmo tempo resolve todos os seus problemas operacionais. Tem autonomia e rapidez de abastecimento do diesel, tem mais potência e torque, não perde eficiência no frio, nem com mais carga ou subidas, não é corrosivo nem tem cheiro, e tem a economia de combustível e a baixa manutenção de um elétrico, além de não poluir.

Existem caminhões a hidrogênio líquido (LH2) e gás (GH2). O modelo da Mercedes-Benz é a hidrogênio líquido com tanque de 80 litros e autonomia de 1000 Km. Já o da Volvo, por exemplo, é a gás de hidrogênio com tanque de 80 quilos. O consumidor poderá escolher qual o da sua preferência. A tecnologia está avançando, e hoje com 1 litro de H2V um caminhão truck anda 12,5 Km, gerando, assim, uma economia com custo de combustível de pelo menos 20%. O caminhão convencional com 1 litro anda apenas em média de 1,5 a 2,5 km. É preciso 6,2 litros de diesel para mover um veículo desse na mesma distância que apenas 1 Kg de H2V. O setor por sinal já sabe que os caminhões a gás natural não apresentam problemas operacionais, embora também poluam muito. Com o hidrogênio verde é ainda melhor porque emite apenas vapor de água, zero carbono, sem a queima de nenhum óleo.

Os agentes no mercado de caminhões pesado parecem já ter feito a escolha pelo truck a hidrogênio. A disputa agora é para saber se será hidrogênio líquido ou em forma de gás comprimido. Antes todos achavam impossível o líquido porque exige uma temperatura muito baixa. Eis que uma das maiores e mais respeitadas fabricantes do mundo, a Mercedez-Benz, apresenta ao mundo o seu modelo com H2V líquido. Anda mil quilômetros sem gastar energia nova com o resfriamento do tanque, numa segurança total. Isso mexe com tudo. Sabíamos que os aviões estavam usando hidrogênio líquido também, mas as alturas facilitam a manutenção da temperatura. No asfalto e com tanta estabilidade? Foi uma tremenda disrupção tecnológica.

E essa disrupção deve ser completada agora com o advento do hidrogênio criocomprimido (CcH2V), o H2V comprimido a baixas temperaturas, o que amplia a densidade energética utilizável do LH2 em 40%, e do GH2 em 200%. Isso significa que caminhões com tanques de apenas 84 livros poderão alcançar uma autonomia de quase 1500 km, o que representa, por exemplo, uma viagem do Rio de Janeiro a Brasília sem precisar parar para reabastecer. Embora os tanques a gás a temperatura ambiente sejam muito seguros, o CcH2 assim como o LH2 acaba de vez com qualquer receio inflamável com relação ao novo combustível, tendo inclusive menos riscos de explosão do que o próprio diesel.

Resta agora saber como será a infraestrutura para o combustível. Os fabricantes acreditam que os caminhões viabilizarão a rede de postos de abastecimento com hidrogênio, acabando por impulsionar o mercado de carros também movidos pelas células de combustível, embora isso não vá acontecer no mesmo ritmo em todo lugar. Há cerca de 1.100 postos de hidrogênio no mundo, dos quais quase 300 ficam na Europa, isso só para os carros e ônibus. Quando esses caminhões começarem a ser vendidos, o número de postos deve aumentar rapidamente. Os europeus já começaram a colocar em prática o plano de ter até 2030 uma estação de abastecimento a cada 200 km, o que seria suficiente para a nova mobilidade rodoviária deslanchar. Segundo dados da alemã FZ Jülich, o custo da infraestrutura de abastecimento com hidrogênio deve em poucos anos se tornar menor do que a infraestrutura de recarga dos veículos a bateria.

Como a Europa não produz muita eletricidade limpa, precisa importar energia elétrica para abastecer sua renovada frota sustentável, abandonando de vez o gás natural. E a única forma de fazer isso é importando hidrogênio verde ou os seus derivados, pois não é possível uma linha de transmissão entre o Nordeste brasileiro e o velho continente. Já em países como o Brasil, o tamanho do território dificulta ainda mais a adoção de caminhões elétricos a bateria. As viagens são muito longas, e em algumas áreas a energia elétrica por rede simplesmente não é viável. Por sua vez, os biocombustíveis desmatam demais, e não serão utilizados no mundo desenvolvido em escala significativa. É rudimentar o raciocínio de que só no Brasil as fabricantes farão caminhões a combustão a biodiesel ou diesel renovável. Uma coisa é tornar o motor híbrido, outra é uma companhia global dessas ter duas linhas de fábrica com motores opostos. Se o país optar pelo caminho do isolamento apenas ficará para trás tecnologicamente, com caminhões-carroça, sem nenhum impacto sobre o resto do mundo a não ser continuar poluindo.

Um estudo profundo feito pela Universidade de Brasília (UnB) mostra perdas de eficiência energética de até 15% entre os caminhões e 20% entre os ônibus com a adoção do biodiesel acima de 10%. Além do aumento do consumo, verificou-se também aumento das emissões de gases efeito estufa em 5%. Isso mesmo, as adições de biodiesel em vez de descarbonizar, pioram as mudanças climáticas e estragam os veículos. O aumento nos custos com o biodiesel chega a 723% por exemplo na troca dos filtros. O biodiesel geral inclusive a paralisação dos motores por formação de borra e cristalização em baixas temperaturas. Levantamento da Confederação Nacional dos Transportes aponta aumento dos custos gerais com o biodiesel que pode chegar a 10%. Vale por fim lembrar que o HVO, óleo vegetal hidrotratado, só pode ser descarbonizado de verdade com o uso do hidrogênio verde na produção. Então, se for para usar o H2V que seja logo um motor elétrico zero emissor de carbono, e não um puxadinho brasileiro a biodiesel ou diesel renovável que isolará o país apenas para atender um grupo econômico muito específico. Independentemente das suas inúmeras variações, o ciclo do diesel está no fim, dando lugar nos próximos anos ao ciclo do hidrogênio. Os caminhões pesados serão os primeiros.

Se alguém ainda tem alguma dúvida de que os caminhões serão movidos a hidrogênio, veja em que estão investindo os principais atores dessa indústria, as montadoras, as fabricantes. Falei aqui da Mercedes-Benz e da Volvo, mas a GWM também está trazendo o seu modelo H2V para o Brasil, e é o seu CEO quem diz: “usando a célula de combustível se libera espaço em tonelagem no caminhão, ao contrário do elétrico”. A Hyundai já está vendendo o seu Xcient Fuel Cell com 31 kg de capacidade de armazenamento que lhe dá 400 km de autonomia, reabastecido completamente em 8 minutos. A chinesa Hybot tem um modelo pronto a GH2 com autonomia de 1.000 Km num tanque de 80 kg e capacidade de carga de 49 toneladas. Toyota e Honda terminaram já o seu caminhão pesado de 12 metros que faz incríveis 14,3 km por quilo de hidrogênio, com um tanque de 56 kg, e autonomia de 800 km. A Ford vai produzir a versão híbrida do F-Max, hidrogênio e diesel. A conversão preserva o mesmo motor e apenas adiciona um anel de injeção de hidrogênio ao sistema de admissão. Cummins, Bosch, Iveco, Nikola, enfim, praticamente todas estão investindo no que é cada vez mais visto como a única saída para esse setor de transporte. E as empresas de logística vão pelo mesmo caminho. A maior transportadora dos EUA, a IMC, que transporta contêineres dos portos para os armazéns optou pelos caminhões a hidrogênio e já encomendou 50 trucks H2V depois de operar frota elétrica a bateria por dois anos com resultados decepcionantes.

Em entrevista recente para o Wall Street Journal, os executivos do setor lembraram que o hidrogênio verde tem todas as virtudes juntas, e se mantém mais caro que o diesel apenas porque a produção do novo combustível é hoje ainda muito pequena. Reconheceram que em três anos o H2V já terá paridade de preço com o diesel com o aumento da produção (e vai ficar ainda mais barato com o tempo). O CEO da IMC ressalta que não tem outra escolha se não investir em caminhões a hidrogênio imediatamente, pois as viagens dos trucks da maior companhia logística dos EUA de contêineres têm mais de 400 km, o que inviabiliza usar elétricos a bateria: “As locações estão além do alcance desses veículos elétricos a bateria”, e simplesmente não funciona ficarem parados por horas reabastecendo. O fato é que caminhões pesados a H2V são mais rápidos, vão mais longe e são melhores do que os elétricos convencionais, e não poluem nada, ao contrário dos movidos a combustível fóssil.

Publicado em 23/01/2024

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