O mito do hidrogênio de etanol

Marcelo Coutinho, Professor doutor da UFRJ e analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com

Há um mito que só persiste no Brasil, e em mais nenhum outro lugar do mundo: o hidrogênio do etanol. Já falamos sobre esse assunto antes, mas dada a repetição dos mesmos falsos argumentos de sempre no noticiário, repetidos como uma cantilena lobista sobretudo dos usineiros de São Paulo, achei por bem voltar a discuti-lo. Vou tentar ser o mais breve e objetivo possível.

Em primeiro lugar, o hidrogênio do etanol é um mito porque sugere que ele seja limpo, que não emite carbono. Os seus defensores dizem basicamente que as plantas que o produzem – sobretudo milho e cana de açúcar – capturam carbono em sua vida, fazendo a conta de emissões fechar zero ou mesmo negativa. Isso é um mito porque eles desconsideram o desmatamento que tais produções acarretam. Nunca eles incluem esse cálculo.

O aumento da destruição dos biomas está fortemente associado à ampliação da dessas culturas das quais se extrai o etanol. Até recentemente, a cana de açúcar era a principal responsável pelo desmatamento, seja derrubando mata virgem diretamente seja principalmente empurrando outras culturas e a pecuária para essas matas naturais ao ocupar o lugar desses outros setores do agronegócio brasileiro. Mais recentemente, nos últimos 5 anos, com a proibição da produção de cana na Amazônia e no Pantanal, o mercado nacional de etanol de milho cresceu 800%, desmatando do mesmo jeito ou até pior do que o seu antecessor.

Como até os passarinhos sabem, e ainda mais a comunidade internacional, o maior problema de emissão de carbono do Brasil é justamente com a mudança do uso da terra, leia-se, lavouras que avançam sobre as matas originais. Se o Brasil não combater esse desmatamento, não conseguirá dar mais nenhu7m passo na descarbonização da sua economia. É algo bastante óbvio, mas diante da força do poder econômico e político do agronegócio, muitos preferem não ver.

E não adianta ficar alternando o desmatamento da Amazônia e Cerrado ano a ano, como se estivessem resolvendo o problema. Não estão. Os incêndios florestais fazem parte dessa conta maldita também. Além de emitir muito carbono, o etanol ainda por cima compete com a produção de alimentos. Imagine uma produção em escala planetária, o efeito desastroso disso sobre o problema da fome. A ONU está cansada de alertar sobre isso. Não é à toa que todas as agências multilaterais vetam o hidrogênio do etanol.

Um detalhe importante é que o produto de segunda geração, que eles alegam ser mais limpo, precisa desmatar do mesmo jeito para crescer, a não ser que nenhum hectare dessas plantações fosse acrescido de agora em diante. Essa conta que eles também escondem. Para usar os restos das plantações será preciso plantar do mesmo jeito. A diferença é que ganhariam um pouco mais de espaço antes de explorar novas terras. Mas para continuar expandindo, precisariam ainda desmantar, queimar e destruir, só que com mais eficiência.

Caso ainda não tenham entendido, explicarei de maneira mais didática. A planta quando volta a crescer de fato reabsorve o carbono emitido no ar com sua queima (mais ou menos), o que ela não absorve nada é o carbono emitido com o desmatamento que foi preciso ser feito antes para plantá-la. Veja-se, assim, que com um truque ilusionista fajuto que omite uma parte essencial de todo o processo produtivo, os usineiros só conseguem enganar quem quer ser enganado. Isso fora outras emissões de carbono menores, e fora outros problemas ambientais.

Em segundo lugar, o hidrogênio do etanol é um mito porque ele em nada acrescenta de descabonização ao etanol que já existe e é regularmente usado. Isso mesmo, trocar o etanol por hidrogênio do etanol é trocar seis por meia dúzia, gastando mais dinheiro e provavelmente desmatando mais ainda. Seria engraçado não fosse um caso de delinquência científica esse embrulho. É fácil identificar e compreender a malandragem.

Um carro, por exemplo, que anda a etanol emite certa quantidade de carbono, algumas contas mostram que até mais que a gasolina porque precisa de mais combustível e desmatamento, mas não entraremos nesse ponto. Um carro com reforma do etanol, ou simplesmente gasificação, geraria hidrogênio que seria emitido no ar. Eles dizem, “olha que inovação perfeita, e só sai vapor d´água pelo cano de descarrega tal como no caso do hidrogênio verde”. Mas é mentira. O carbono será emitido na mesma quantidade na atmosfera, a não ser que haja um tanque para captura do carbono e outros instrumentos, o que obviamente encareceria e complicaria muito esse veículo. Aliás, a mesma coisa a própria gasolina poderia fazer.

O veículo com hidrogênio do etanol seria elétrico e emitiria vapor d’água, mas também carbono, o que eles deliberadamente omitem. Portanto, qualquer tentativa de igualar o hidrogênio verde com o hidrogênio do etanol em termos de descarbonização é simplesmente uma fraude. O hidrogênio verde de eletricidade eólica emite 1,1 kgCO2eq/kgH2. Já o Hidrogênio de biomassa com reforma do etanol emite quatro vezes mais carbono, 4,6 kgCO2eq/kgH2. Isso sem falar do metano. Em qualquer legislação do hidrogênio no exterior o hidrogênio do etanol, ou mesmo o etanol sozinho, ficaria de fora dos combustíveis limpos.

Em terceiro lugar, sem querer me estender muito, a gaseificação é um método de produção bem menos flexível e simples do que a eletrólise, acostumada a operar com oscilações. O hidrogênio do etanol depende de plantas que têm época e lugar para cultivar, crescer e cortar. A planta, ou melhor, o resíduo dessa biomassa, é um insumo também menos confiável porque depende de boas safras, que se tornam cada vez mais um desafio justamente em razão do aquecimento global que o etanol tem ajudado a piorar.

Seja por causa da entressafra, que naturalmente ocorre, seja por problemas com as safras decorrentes de muita chuva ou falta dela, ou mesmo pragas como gafanhotos também cada vez mais presentes, a verdade é que o etanol não é um combustível com suprimento constante no qual apostar as fichas. Tudo isso e mais faz com que o hidrogênio do etanol não passe de um mito alimentado na imprensa brasileira para fazer com que os usineiros continuem gozando de incentivos públicos. Quer fazer carro híbrido, elétrico e etanol? Faça, mas com moderação, e não atrapalhe o hidrogênio verde, que é o que o mundo todo espera ansiosamente do Brasil.

Finalmente, o mito de que o etanol é o melhor “carregador de hidrogênio”. Se o critério for reducionista, exclusivamente químico, há moléculas com mais hidrogênio do que o etanol, como é o caso, por exemplo do café, que tem o dobro. Mas, como já vimos, o problema se manteria com relação às observações anteriores. A verdade é que existem opções muito melhores do que o etanol para armazenar a molécula renovável. As opções variam desde a amônia verde líquida e transportadores de hidrogênio orgânico líquido como o tolueno, até o metanol verde. Há uma interessante solução para combustíveis sintéticos usando o hidrogênio verde combinado com o carbono biogênico capturado da indústria de celulose. Cada vez mais aplicações bem-sucedidas surgem também com o próprio hidrogênio líquido, que tem alta densidade energética e segurança, ou mesmo como gás comprimido.

Publicado em 12/03/2024.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *