Agenda legislativa do hidrogênio verde

Marcelo Coutinho, Professor doutor da UFRJ e analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com

Os investimentos na indústria do hidrogênio verde no Brasil estão engatilhados, precisando apenas ultrapassar a agenda legislativa para serem efetivados. Infelizmente, o Congresso Nacional tem demorado mais do que se previa na elaboração do marco regulatório, que hoje vive um impasse entre Senado e Câmara. Lobbies do petróleo e do etanol em Brasília simplesmente impedem o avanço de uma boa lei do hidrogênio verde, que teve até mesmo o seu nome suprimido do projeto aprovado pelos deputados federais no final do ano passado. Tais lobbies eram esperados, mas a forma como o governo e o Congresso atendem aos seus interesses tão fortemente foi subestimado por quem imaginou haver uma mudança política mais compatível com a transição energética. Tal mudança não aconteceu até agora na prática.

Os lobbies em defesa do status quo souberam mobilizar de forma eficiente as bancadas dos estados produtores de combustíveis fósseis e biocombustíveis. Esses dois setores emissores de carbono se juntaram em veto ao progresso da agenda legislativa pró hidrogênio verde, distorcendo profundamente o texto da Câmara dos Deputados, onde tais bancadas são maiores. Em contraposição, no Senado, com uma representatividade entre os estados mais equilibrada, as bancadas do Norte e Nordeste conseguiram que a casa aprovasse um bom texto de lei para o hidrogênio limpo, ainda que precise sofrer alguns ajustes pontuais necessários.

Duas questões centrais estão em jogo. Primeiro, com quem ficará o novo setor? A indústria do hidrogênio verde prefere que fique com a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), mais imparcial. Já a indústria do petróleo e etanol quer a Agência Nacional do Petróleo (ANP) regulando algo que conflita interesses irreconciliavelmente. Existe razões técnicas que justificam tanto uma quanto outra posição, porém, a disputa é política. O hidrogênio verde é um substituto e concorrente direto do petróleo e do etanol, não deveria, portanto, ser regulado pelo órgão do petróleo. Existem estudos internacionais sobre captura regulatória que dão sentido ao temor de que o hidrogênio verde, uma vez na ANP, possa ser enfraquecido.

A segunda questão tem a ver com a certificação verde e inventivos públicos. A certificação deve permitir ao consumidor e ao investidor distinguir com clareza e total transparência entre os diferentes tipos de procedência do hidrogênio, porque eles não são iguais e apresentam graus muito variados de emissão de carbono. Uma certificação que mistura tudo como no texto da Câmara certamente afastará investidores e eliminará o direito de escolha do consumidor pela energia limpa. Com relação aos incentivos públicos, sobretudo de ordem fiscal, é preciso que eles priorizem o hidrogênio verde por dois motivos muito objetivos: precisamos atrair essa indústria nascente para o Brasil, e o H2V é o único que comprovadamente descarboniza a economia.

É possível, sim, conciliar interesses concorrentes, mas sem perder de vista as prioridades. O Brasil precisa atrair investimentos internacionais que estão em queda, e eles só virão para o hidrogênio verde e ainda assim se houver incentivos ao menos compatíveis com aqueles observados em outros países. É conciliável uma legislação que também inclua o hidrogênio azul ou mesmo o de biomassa, embora esse tipo nem seja levado a sério no exterior. Porém, inclusão não significa confusão e divisão dos poucos recursos que Estado brasileiro dispõe para ajudar, até porque o hidrogênio azul é fóssil é já tem a Petrobrás para alavancá-lo se assim a empresa desejar (a própria companhia já disse que o H2V é mais promissor).

Uma boa legislação do hidrogênio, moderna e mais adequada ao contexto mundial, deve priorizar o hidrogênio eletrolítico alimentado por fontes renováveis, com certificação separada e incentivos privilegiados. Isso não impede que a lei permita também a produção do hidrogênio azul ou de outra espécie, apenas não deve se confundir no texto legal a taxonomia. Já com respeito ao órgão regulador, o melhor é que o H2V fique com a ANEEL. Se isso não for politicamente possível, então ao menos a ANP deve mudar de estrutura não só acrescentando em seu nome o hidrogênio verde, mas com diretoria e processos próprios para que não seja prejudicada pelo setor preexistente, por exemplo, retardando autorizações.

Infelizmente, é preciso reconhecer que o Congresso não tem mostrado verdadeira vontade de pacificar a questão, o que só colabora para as coisas continuaram ruins como estão. A não decisão favorece os combustíveis sujos. Não tem nada que ocupe a agenda congressista atualmente que impeça os parlamentares de aprovarem o margo regulatório do hidrogênio verde agora em março, tomando o texto que saiu do Senado como base para deliberação dessa vez na Câmara Federal. O texto do Senado também deve sofrer mudanças, mas é muito melhor do que o texto que foi aprovado pelos deputados.

Não é possível que o Brasil vá se manter refém dos estados produtores de petróleo e etanol, até porque o hidrogênio verde não vai superar essas energias antigas de um ano para outro. Vai levar muito tempo tal movimento, o que permitirá ampla adaptação de todos. Em vez de serem blocos de resistência, os atores que têm impedido a legislação do hidrogênio verde de prosperar, deveriam se tornar líderes do processo de mudança que vai acontecer no mundo, queira ou não o lobby em contrário. O problema é muito maior e se chama mudanças climáticas. Não tem como parar a transição energética em direção às economias pós-carbono. Mas tem como atrapalhar o Brasil não deixando que ele seja o líder dessa nova indústria como todos esperam.

Publicado em 20/02/2024

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