Marcelo Coutinho, Professor da UFRJ e analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com
Muitas vezes no debate público se faz uma grande confusão entre hidrogênio e baterias, e como o nosso principal objetivo aqui é sempre esclarecer questões, que muitas vezes concorrem equivocadamente contra a transição energética, resolvemos escrever com a transparência habitual sobre um setor específico de transporte fora do escopo prioritário do hidrogênio verde (H2V). Os veículos leves ou pequenos ou de circulação estritamente nas cidades de forma intermitente, embora também possam ser movidos a H2V, não são o foco deste novo combustível. E por um motivo muito simples. Para a descarbonização dos carros, as baterias de lítio ou de outro material já resolvem o problema satisfatoriamente.
Um veículo elétrico a bateria (VEB) é alimentado por eletricidade armazenada numa bateria e recarregado conectando-se à rede elétrica. Já um veículo elétrico de hidrogênio (VECC) produz sua própria eletricidade por meio de uma reação eletroquímica numa pilha de células de combustível, que se resume a uma membra de eletrólitos entre dois eletrodos (catodo e anodo). Portanto, os dois usam eletricidade, mas a origem dessa eletricidade é que muda. A eletricidade é armazenada na bateria ou no próprio hidrogênio, distinguindo, assim, os carros elétricos. Um você para no posto e recarrega com eletricidade direta, e o outro você abastece com hidrogênio havendo nele energia embutida.
Todos que estão realmente preocupados com as mudanças climáticas e atentos aos avanços tecnológicos e mercados globais já sabem que a eletricidade vai mover o mundo, deixando para traz os antigos combustíveis fósseis e de biomassa. Sinto muito, mas o etanol emite muito também antes mesmo de ser produzido. Basta verificar o tamanho da área que as plantações de cana de açúcar e milho, que produzem esse biocombustível, já desmataram direta ou indiretamente, isso para não falar do óleo de soja. A mudança do uso da terra é o segundo maior emissor de carbono, e o primeiro no Brasil. O ciclo renovável de carbono do etanol só acontece depois que mudaram o uso da terra, antes disso é quase tão destrutivo quanto os fósseis.
A eletricidade vai dominar a mobilidade e o aquecimento de casas e escritórios, e embora o H2V possa servir de energia para isso também, ele não é a melhor opção disponível para carros comuns. Isso porque as baterias aproveitam cerca de 90% da eletricidade gerada, enquanto o hidrogênio verde hoje aproveita 67%, podendo chegar a 80% muito em breve. Esse diferencial que variará entre 10% a 23% torna as baterias mais viáveis para carros do que o H2V. Por mais viáveis quero dizer mais eficientes no aproveitamento energético primário oriundo das fontes eólicas, solares ou hídricas. Vale notar que tanto a eficiência da bateria quanto a do hidrogênio poderão ser menores a depender do transporte da energia. Quanto mais longas as linhas de transmissão, mais se perde energia. E quanto mais conversões o H2V sofrer, também.
Isso quer dizer que não haverá carros elétricos a hidrogênio? Não só haverá como já existem e funcionam muito bem, e estão à venda (ainda não no Brasil). Dentro de uma década, algo como 15% dos emplacamentos de automóveis será com carros a hidrogênio. O motivo disso é muito simples. A eletricidade vai mover o mundo, mas quando tem um oceano no meio ou as distâncias são grandes demais, só há uma forma de levar a eletricidade de locais com maior geração elétrica renovável para locais com menor geração, e essa forma é o hidrogênio verde puro ou dentro de alguma molécula como a amônia, o metanol e os transportadores de hidrogênio orgânico líquido como o tolueno.
A Europa, por exemplo, não tem capacidade suficiente de gerar energia com eólicas e solares porque tem pouco vento e sol. Mas, por outro lado, tem uma demanda enorme para carros elétricos. O velho continente tem sido o lugar onde mais rapidamente o mundo está se descarbonizando. Diante disso, não resta outra alternativa para os europeus senão importar hidrogênio verde para mover sua nova frota de automóveis cada vez mais numerosos. Não tem como eles puxarem uma linha de transmissão elétrica do Brasil ou do mundo árabe para se recarregarem. Então, essa energia elétrica alojada no hidrogênio verde virá da exportação de outros países. Por isso que se diz que o H2V se tornará uma commodity.
Note que as baterias ganham do H2V em quase todas as situações para carros pequenos, mas desde que haja redes de transmissão terrestres seguras e os veículos não sejam de uso contínuo. Onde isso não for possível ou não for o mais adequado, os carros serão a hidrogênio também, pois nesses casos o H2V passa a ser mais eficiente do que a bateria em aproveitamento da energia elétrica. Vale lembrar que o veículo H2V leva muito mais vantagem frente à bateria em qualquer outro item de avaliação como tempo de abastecimento, autonomia e revenda, de modo que se o diferencial de aproveitamento das fontes renováveis cair abaixo de 10%, aí se tornam mais interessante mesmo os carros movidos a hidrogênio verde.
Se em lugares como a Europa e o Japão será melhor ter carros elétricos a H2V, em outros como no Brasil faria, a princípio, muito mais sentido haver carros elétricos a bateria por causa da nossa abundância de energia elétrica renovável, quase 90% de toda a rede. Isso significa que a energia limpa é muito barata aqui no país e disponível, com uma vasta rede de transmissão e bastante capilaridade, o que tornaria desnecessário termos muitos carros a hidrogênio, exceto por um motivo fundamental: a vastidão do país. A longas distâncias, o VECC dá um baile no VEB. Como o brasileiro gosta de viajar de carro e percorre distâncias superiores muitas vezes a 500 Km, aí vale a pena ter um VECC em vez de um VEB. Além disso, os condomínios das grandes cidades brasileiras não parecem muito abertos a terem pontos de recarga.
Eu disse inicialmente que os carros a hidrogênio devem ter daqui a 10 anos algo como 15% da participação do mercado de automóveis. Porém, pelas razões acima listadas, é possível que esse percentual seja bem superior, fazendo com que o VECC acabe em algum momento prevalecendo também nesse setor. Dito isso, embora o H2V seja a fonte de energia renovável mais versátil que existe, podendo ser usado em todo tipo de veículo e ao mesmo tempo também na indústria, em aquecedores de casas e escritórios, geradores e usinas termoelétricas, é importante frisar que o uso mais inteligente para o H2V é, em primeiro lugar, na descarbonização de processos industriais, em combustíveis de veículos grandes, fertilizantes, drones, recursos militares e reserva de energia para evitar ou solucionar apagões e panes secas, por exemplo, em centrais de dados de computadores. O H2V é prioritariamente voltado para esses segmentos.
Grosso modo, sobre os veículos, poderíamos dizer que a bateria está para a gasolina como o hidrogênio está para o diesel. Isso não é preciso, mas ajuda a separar os papéis de cada um na transição energética. As chances de um veículo a diesel se tornar um veículo a hidrogênio é muito maior, e o inverso acontece com a gasolina. No que diz respeito aos carros, existe uma área de fronteira com maior disputa entre VECCs e VEBs. Para vans, SUVs grandes e caminhonetes, o hidrogênio verde parece ser tão promissor quanto a bateria por causa do peso desses carros e das suas funções. São veículos maiores que a maioria dos carros e costumam rodar mais e a longas distâncias, muitas vezes com pouco tempo para recarga. Não à toa, temos por exemplo, o modelo iX5 da BMW a hidrogênio, um SUV que já rodou o mundo e passou muito bem por todos os tipos de teste. Com um tanque de apenas 6 kg de H2V, esse carro anda mais de 500 Km sem reabastecer. Nesses casos, deve ficar mais ao gosto do freguês a escolha.
Com relação aos postos para reabastecer ou recarregar, hoje os custos da infraestrutura dos VEBs são menores, mas o próprio crescimento desse mercado de elétricos faz com que os custos da infraestrutura dos VECCs fiquem mais baixos nos próximos anos, de modo que esse não seria tanto um diferencial a favor de um ou de outro no longo prazo. Não é como o ovo versus galinha, mas os dois juntos. Quantos mais carros elétricos circulando, devemos ter mais postos, e quanto mais postos, mais carros serão vendidos. A ampliação da rede é algo natural, embora precise ser planejada. A venda de carros a hidrogênio já começou, mas ainda é residual. Nos EUA em 2023, houve um aumento de 10% nas vendas em relação a 2022, atingindo um número de 2.968 carros a hidrogênio emplacados. Por sua vez, foram vendidos mais de 1,1 milhão de VEBs num aumento de 48%. As vans, picapes e SUVs a célula de combustível só chegam nas concessionárias no exterior a partir do final do ano. No Brasil, só depois de 2025 ou de 2026, porque aqui a legislação está muito atrasada e o lobby do diesel e do etanol é muito forte.
Finalmente, um aspecto interessante de se notar é a correlação de força entre as empresas. Enquanto as novatas Tesla e BYD predominam no mercado de VEBs, as fabricantes tradicionais como a Toyota, BMW, Ford e Stellantis devem dominar o mercado de VECCs, ou pelo menos saem com vantagem no início. Isso talvez seja uma pista do que vem pela frente na corrida mundial da indústria automobilística. Os VECCs são mais exportáveis do que os VEBs por razão de segurança marítima. Além disso, as companhias tradicionais devem se associar à proteção de mercados internos, sobretudo uma proteção contra os veículos produzidos na China muito mais baratos. A nova cara da globalização ainda não está completamente definida, mas o aspecto político deve também pesar nessas cadeias industriais e, consequentemente, no tipo de carro elétrico.
A princípio, as montadoras ganham tanto com os VEBs quanto com os VECCs em matéria de renovação das frotas. Porém, as revendas dos carros a hidrogênio devem ser muito mais viáveis porque não têm a desvalorização brutal das baterias. Isso sugere um mercado de revendas dos H2V mais promissor. Sabe-se que um dos maiores desafios agora dos VEBs é com o mercado de revendas, pois depois de 8 anos as baterias começam a perder muito eficiência até praticamente se tornarem inviáveis depois de 12 anos. Talvez isso mude no futuro, mas hoje quando você vai trocar a bateria de um VEB você troca logo é de carro, porque a bateria é muito cara. Esse problema não existe nos VECCs, sendo a revenda mais ou menos como é hoje. Você troca algumas peças, eventualmente refaz o motor e segue adiante, sendo assim um carro muito mais longínquo e, portanto, talvez mais útil para regiões sem o mesmo poder aquisitivo dos europeus, sobretudo para carros de trabalho como vans e picapes.
Em resumo, em termos de vantagens para os consumidores, os carros elétricos à bateria são mais eficientes, com despesa de combustível muito menor. Isso é algo extremamente relevante, e eu diria definidor para eles preponderarem entre os segmentos dos leves na maior parte dos lugares. Por outro lado, os carros elétricos a hidrogênio abastecem em apenas 5 minutos todo o tanque, o que representa 90% de economia de tempo em relação aos concorrentes, e também têm cerca de 100 km de maior autonomia, podem ser mais facilmente revendidos, estão imunes aos apagões e não perdem eficiência no frio. Por causa da sua escassez, o preço do hidrogênio verde é hoje ainda bastante alto. Esse preço só cairá com maior produção de H2V, o que deve acontecer nos próximos anos.