Como a Alemanha vai conquistando o mercado H2V brasileiro

Professor Marcelo Coutinho, analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmal.com

A terceira maior economia do mundo, a Alemanha, tem paulatinamente desenvolvido e colocado em prática um plano de industrialização do hidrogênio verde bastante completo com vários parceiros internacionais e em quatro frentes de atuação: infraestrutura, produção doméstica, produção externa e importação. Um dos países com quem os alemães têm planos de negócios é o Brasil, onde todas as frentes de trabalho da potência europeia se articulam de tal modo a praticamente garantir um lugar central no nosso mercado ao formatá-lo desde a sua origem.

Os alemães aproveitam que tanto a China quanto os EUA não apresentaram ainda planos mais ambiciosos no Brasil quanto ao hidrogênio verde para conquistar o mercado brasileiro, configurando suas bases essenciais. A um só tempo, a Alemanha desenvolve projetos de produção no Brasil do combustível verde e dos eletrolisadores que o fabricam, garantindo, assim, um relacionamento econômico privilegiado em que a nação europeia ganha nas duas pontas. Consegue a commodity para descarbonizar sua economia, e ainda por cima vende seus bens de capital e desloca interesses contrários.

Numa nova corrida industrial como a que estamos vendo com o hidrogênio verde, é fundamental o que se chama em economia de “path dependence”, ou dependência de trajetória. Esse termo veio originalmente do campo de estudos da tecnologia e explica muito bem a estratégia alemã. Em resumo, uma vez que você implanta uma determinada nova tecnologia no mercado, ainda mais em momentos fundacionais como agora, esta tecnologia específica adquire cada vez mais importância com o passar do tempo, eliminando as chances de outra tecnologia concorrente ganhar espaço e influenciar depois.

O eletrolisador é um fator chave na economia do hidrogênio. Quem dominar a sua produção, domina toda a engenharia do mercado. Trata-se de um dispositivo/máquina que permite produzir hidrogênio por meio de um processo químico denominado eletrólise, capaz de quebrar as moléculas da água em hidrogênio e oxigênio por meio da eletricidade. Os alemães buscam exportar o seu modelo tecnológico de fabricação de H2V baseado em eletrolisadores de ponta do tipo PEM, com membrana de troca de prótons, em clara e direta concorrência com os chineses, especializados em outro tipo de eletrolisador, do tipo alcalino.

A forma como os alemães buscam ganhar essa disputa industrial não se limita à tecnologia em si, mas principalmente ao modo como estabelece suas parcerias no Brasil. Não só investem em projetos de produção de hidrogênio verde, sobretudo no Nordeste, como também estabelecem aqui uma base de produção de seus eletrolisadores, mais exatamente em Minas Gerais. Dessa maneira, os alemães garantem o fornecimento do combustível e insumo industrial para abastecimento europeu, ao mesmo tempo em que exportam sua tecnologia. E uma coisa reforça a outra, obviamente, inclusive para outros projetos de produção de H2V em que os alemães não estejam diretamente envolvidos.

A lógica é muito simples e inteligente. A Alemanha comprará o H2V brasileiro para sua descarbonização feito em uma fábrica alemã, com investimento alemão, e com tecnologia alemã em solo brasileiro, mas também venderá seus eletrolisadores para as demais plantas de hidrogênio no país mesmo que a produção destas não seja dirigida à Alemanha ou feita a partir da iniciativa alemã. Uma produção local leva vantagem tributária, regulatória e geográfica em relação à importação dos eletrolisadores em uma área que deve ser protegida pelo governo brasileiro, ainda mais quando não há também um investimento consistente na produção da commodity aqui no país. Com isso, a Alemanha estabelece e dissemina um padrão tecnológico com células PEM que acaba por dominar a maior parte do mercado nacional. Como os chineses não estão fazendo a mesma coisa, acabarão tendo mais dificuldade de vender depois os seus eletrolisadores alcalinos, e influenciarão menos esse mercado emergente.

A política alemã já lançou dois grandes leilões bilionários de reserva de compra para importação de hidrogênio verde, que servem de estímulo a novos projetos voltados justamente para a Alemanha. O edital do segundo leilão acabou de ser lançado com o valor equivalente a 5 bilhões de reais. Isso sem falar do robusto planejamento de gasodutos e portos para receber toda essa produção de fora, infraestrutura esta que já foi objeto de nossa análise em artigo anterior. Ou seja, enquanto a China se mantém ainda muito presa ao seu próprio mercado interno, acaba perdendo relevância internacional mesmo sendo a líder na produção de H2V e com mais investimentos volumosos já agendados.

Os alemães parecem ter aprendido bem com as derrotas experimentadas com as outras fontes renováveis, em que a China dominou rapidamente, a saber, eólica, solar e baterias. A potência europeia quer que seja diferente com o hidrogênio verde, e parece que vai conseguindo equilibrar até aqui a força da economia chinesa com parcerias externas mais elaboradas. A Alemanha maneja com destreza a política de path dependence da nova tecnologia que funciona como peça-chave no xadrez da nova economia verde. 

Se a China não quiser perder o mercado brasileiro nesse setor vai precisar se apressar a desenvolver projetos dentro do Brasil, estabelecendo aqui alguma base. Só assim poderá demonstrar a qualidade da sua tecnologia, além de influenciar a produção local com ramificações para outros setores econômicos muito importantes como a mineração e a transmissão de energia. Do contrário, Pequim vai assistir os alemães fazendo “barba, cabelo e bigode”. Vale notar, finalmente, que outros países tentam participar dessa disputa de maneira mais difusa. A estratégia inglesa, por exemplo, inclui editais internacionais de financiamento com chamada para hubs na plataforma Climate Investment Funds (CIF). Austrália e Japão, por sua vez, preferem investir diretamente. E os EUA permanecem à espera do novo governo.

Publicado em 04/12/2024

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