Marcelo Coutinho, Professor doutor da UFRJ e analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com
Temos escrito aqui muito sobre as vantagens e a viabilidade econômica do hidrogênio verde em diversas áreas. Já falamos também bastante sobre o potencial industrial do H2V no Brasil, sobretudo no Maranhão, e sua importância para o desenvolvimento nacional. No entanto, o tempo passa e pouco acontece em termos de investimento para produção porque sequer temos uma lei que regulamenta esse novo setor. Então, talvez deva ser a hora de nos perguntarmos, e se, afinal de contas, não houver hidrogênio verde? Se não o produzirmos nas quantidades que são demandadas, quais serão as consequências?
A primeira consequência é econômica. De acordo com o próprio Banco Central, o Brasil recebeu 17% menos investimento direto estrangeiro em 2023. Como todos sabem, além de inteligência artificial, a grande fronteira de investimentos hoje no mundo é na transição energética, especialmente em hidrogênio verde. Perdemos toda a primeira onda de aportes em H2V entre 2022 e o ano passado, e vamos perdendo já a segunda onda em 2024. O Brasil não é competitivo em alta tecnologia, então, não podemos dizer que perdemos oportunidade nesse campo computacional. Mas no campo energético renovável, certamente perdemos, sim, e muito, pois temos a princípio vantagens comparativas, e todos esperavam que o Brasil despontasse como líder.
Infelizmente, o Brasil ainda investe em combustíveis que não são aceitos no exterior e que continuarão não sendo, com raras exceções. Etanol e biodiesel são combustíveis orgânicos, logo emitem carbono, além de competir com a produção de alimentos. As regulamentações dos países que têm capital para investir já excluíram há muito tempo os combustíveis biológicos de suas ações estratégias e planos de investimentos, mas o Brasil insiste nisso, capturado por um lobby muito forte e a ilusão de que são energias limpas. Como os biocombustíveis desmatam bastante, sobretudo empurrando outras culturas e pecuária para áreas virgens, outra consequência de não termos hidrogênio verde é o país continuar destruindo os seus biomas.
O Brasil pode continuar ignorando esses fatos o quanto quiser, mas o mundo vai prosseguir com ou sem o nosso hidrogênio verde. Já passou a etapa de esperar pelo marco legal brasileiro. Perdemos o timing. Investimentos em H2V já estão ocorrendo do Chile ao Japão, dos EUA à Europa, do Canadá à China, da Namíbia à Arábia Saudita. É verdade que esses investimentos não estão ocorrendo na velocidade planejada, ficando muito aquém do que é necessário e era esperado, mas já estão saindo do papel. A siderúrgica de aço verde na Suécia é um bom exemplo de projeto de H2V que está sendo implementado muito rapidamente. As empresas e indústrias que não estão se preparando para a transição energética seriamente, vão ter sérios problemas financeiros ou mesmo quebrar. Os seguros já estão aumentando, os investimentos estão sendo mais seletivos, os impostos sobre combustíveis fósseis serão cada vez mais asfixiantes para esses negócios, a gasolina e o diesel serão banidos, e daqui a pouco as ações de empresas sujas vão perder valor nas bolsas.
Digamos, no entanto, que a velocidade da maioria dos projetos no mundo continue lenta, e não tenhamos o hidrogênio verde suficiente para descarbonizar a economia. Aí as consequências seriam dramáticas. Em primeiro lugar, sem o H2V provavelmente teríamos uma escassez de combustível a partir mais ou menos de 2026 porque o mundo não está substituindo as reservas de petróleo como antes justamente por causa da necessidade de transição energética e declínio dos poços. Em segundo lugar, sem o H2V, as ações para uma economia menos depende do carbono se limitaria às baterias de carros elétricos e às bombas elétricas para as casas e escritórios, ambas alimentadas por usinas eólicas e solares. Não descarbonizaríamos, assim, os processos industriais, os veículos grandes, os fertilizantes nem as usinas termoelétricas. Ou seja, continuaríamos emitindo muito CO2 e metano, e aquecendo o planeta.
Vale notar que já ultrapassamos +1,5 ºC de limite de aumento na temperatura da Terra. Ninguém sério questiona isso. Pegou os cientistas de surpresa, mas é um fato. Estudo agora publicado na revista científica Nature, afirma com dados novos baseados em esponjas marinhas que já chegamos a 1,7 ºC acima dos níveis pré-industriais, e que alcançaremos +2 ºC em 2030. No Acordo de Paris, 9 anos atrás, achávamos que chegaríamos a esse nível só em 2100. A verdade é que o clima está se deteriorando muito mais velozmente do que a ciência calculava. Andamos agora em terreno desconhecido, e estamos no pior cenário de todas as projeções, muito perto de um ponto sem retorno.
As temperaturas dos oceanos têm revelado algo ainda mais assustador do que as temperaturas médias a dois metros do solo. Nos últimos 365 dias, as temperaturas dos mares foram 0,25°C mais altas que as do superforte El Niño de 2015/2016, indicando uma taxa de aquecimento em torno de 0,30°C/década. No gráfico acima, podemos ver o quanto a temperatura dos oceanos em geral aumentou, não só a do Pacífico. Mesmo uma criança pode interpretar o desenho dessa curva. O El Niño não é o principal causador desse aquecimento. A temperatura sobe consistentemente, com ou sem o fenômeno do Pacífico. E dessa vez deu um salto em 2023, mostrando que há um efeito cumulativo ainda mais grave, que se traduz na aceleração das mudanças climáticas.
Analisando exclusivamente o oceano Atlântico Norte, no segundo gráfico acima, percebemos algo ainda mais aterrorizante. As anomalias da temperatura em recordes sucessivos nos últimos 365 dias cobrem uma área de 40 milhões de quilômetros quadrados de calor que nunca tínhamos visto antes, lembrando que é necessário 3 mil vezes mais calor para aquecer a água do oceano em 1°C do que para o mesmo volume de ar. Observe a curva do ano passado em vermelho como destoa de tudo que já vimos, bem como a curva que se forma acima dela referente a 2024. Não tem como não ficar muito preocupado. Espera-se que a temperatura alivie a partir de junho sobretudo por fatores naturais, com destaque para a nuvem de areia do Saara que deve esfriar o mar como sempre faz. Com ou sem esse esfriamento momentâneo, a situação é muito grave, mas se tal previsível esfriamento não acontecer com tanto aerossol, é algo mesmo desesperador. Um dos possíveis cenários é a desaceleração da corrente do Atlântico Norte conhecida como AMOC. Se isso vier a ocorrer, a Europa congelará como num daqueles filmes da era do Gelo, e o velho continente se tornaria inviável, com efeitos que se estendem da América do Norte à Rússia.
Observe agora o último gráfico, mais completo de detalhes. A linha verde é uma tendência otimista de curva possível para 2024 de aquecimento das temperaturas na superfície do mar. De novo, espera-se que haja um esfriamento no meio do ano em diante, mais ou menos como aconteceu em 2016, fazendo a curva de 2024 se deslocar para baixo da curva de 2023. De novo, se isso não se verificar, e as temperaturas continuarem batendo recorde depois de junho, é o caso de já começarmos a pensar no pior, como, por exemplo, a retirada planejada da população das cidades costeiras. Tanto o novo estudo da Nature quanto esses gráficos sugerem que estamos no limite para consertar o clima do planeta que a própria humanidade estragou. Entre as consequências terríveis que já estão diante de nós concretamente destaca-se o descongelamento da Groelândia e da parte ocidental da Antártida, que levará ao aumento do nível do mar acima de cidades como o Rio de Janeiro, com quase 7 milhões de habitantes. Sim, essas geleiras já estão praticamente condenadas pelo aquecimento, e bilhões de pessoas no mundo terão que se mudar das costas. A questão é em quanto tempo. Se a curva em lilás no topo desse gráfico não cair depois de junho, as chances é que tenham que se mudar muito antes do que se imaginava. Isso não é uma brincadeira. O que está em sério risco são as condições climáticas que tornaram possível a civilização existir.
Essas são algumas das consequências de não termos o hidrogênio verde como insumo industrial e combustível. A humanidade depende do H2V para estabilizar o clima que viabilizou as civilizações. Sem H2V, teremos mais calor mortal, muito mais mosquitos, doenças, epidemias, e muito menos animais selvagens, diversidade biológica, corais, água e comida. A agricultura já sente os efeitos das mudanças climáticas, inclusive derrubando safras no Brasil. A Amazônia deixaria para sempre de ser uma floresta tropical, algumas regiões do mundo seriam inundadas, outras tão áridas quanto inóspitas. Parte do Maranhão ficaria debaixo d´água com as chuvas e avanço do mar, e o restante do Nordeste viraria de vez um deserto com secas mais severas e permanentes. Muitas cidades no Sul do país se inviabilizariam com as tempestades e ciclones extratropicais. Teríamos menos cerveja e menos pão. Pessoas morreriam por alguma dessas causas aos milhões, ou bilhões, com um número incomensurável de refugiados e deslocados internos. Guerras por recursos escassos, colapso econômico e social. Um verdadeiro caos, distopia, apocalipse, que obviamente viria à prestação, numa sucessão cada vez maior de catástrofes acompanhadas de progressivas crises financeiras e humanitárias.
Isso tudo é o que aconteceria sem o hidrogênio verde. E desprovido de exageros ou futurologia barata. Existe a possibilidade também de termos que construir um grande guarda sol no espaço para nos protegermos dos raios solares, ou fazer alguma modificação genética nas algas marinhas para absorver carbono mais rapidamente, ou ainda desenvolver usinas nucleares em cada cidade. Imagine o quanto essas artimanhas são mais difíceis, dispendiosas e perigosas. E mesmo assim ainda continuaríamos precisando reduzir as emissões dos gases de efeito estufa em uma série de áreas que só podem ser descarbonizadas com hidrogênio verde, sob pena de vivermos eventos climáticos extremos sem volta à normalidade. Já foi muito dióxido de carbono emitido, e ele fica na atmosfera aquecendo o planeta por mil anos. Ultimamente estamos emitindo também muito metano, que se mantém na atmosfera subindo ainda mais a temperatura que o CO2 por muitas décadas. Então, toda vez que alguém for cético com relação ao hidrogênio verde ou propuser alguma solução falaciosa, lembre-se das consequências de não desenvolvê-lo em grande escala global imediatamente.
Em tempo, em seu último relatório um ano atrás, o Painel Intergovernamental sobre a Mudança no Clima das Nações Unidas, o IPCC, que reúne centenas de cientistas do mundo inteiro, já veio em tom extremamente alarmante, dizendo com todas as letras que se tratava do último aviso. O último aviso antes de ser tarde demais. Desde então, a situação piorou muito no clima, de maneira que, no próximo relatório do IPCC/2024, provavelmente em março, o tom deve vir mais enfático ainda por conta da urgência do problema. Sinceramente, não sei o que mais eles possam dizer que já não tenham dito, quais palavras e adjetivos podem descrever o que está acontecendo para sensibilizar governantes, empresas e as pessoas em geral. Não parece mais ser sobre convencer ou conscientizar. Todos já estão sentindo as mudanças climáticas na própria pele. Precisamos agir, sem mais nenhum adiamento ou demora, e precisamos do hidrogênio verde, doa a quem doer.
Publicado em 6/02/2024