Marcelo Coutinho, Professor doutor da UFRJ e analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com
Uma reportagem sobre o hidrogênio geológico tem se reproduzido exaustivamente em diferentes lugares, quase com a mesma redação propagandística (“nova corrida ao ouro”). Em essência, querem chamar a atenção para uma grande “descoberta”, um tipo natural de hidrogênio encontrado no subsolo profundo como se fosse a salvação de tudo. Seriam milhões de milhões de toneladas dessa molécula disponíveis. Mas qual é a verdade nisso tudo? Este artigo procura esclarecer. Sabemos muito bem que a indústria petrolífera tem se valido de todo tipo de artimanha para retardar a transição para o hidrogênio verde. Os mesmos geólogos que procuravam poços de petróleo agora prometem a redenção com o hidrogênio natural, ou hidrogênio branco.
De fato, cresceu o interesse sobre o hidrogênio geológico com amostras recolhidas em algumas poucas partes do mundo, inclusive no Brasil, no Rio de Janeiro, coincidentemente em uma cidade que já vislumbra o fim do petróleo no pré-sal, de onde tem tirado toda sua renda. Uma equipe de franceses foi a Maricá (RJ) e diz ter encontrado muito hidrogênio natural por lá. O mesmo aconteceu na França e outros pouquíssimos países. Na verdade, não é nada conclusivo. Muitos estudos ainda precisam ser feitos para se chegar a uma ideia real do que tem nesse subsolo em matéria de hidrogênio. Por enquanto é só e apenas uma esperança. Mas seria mesmo uma esperança? Vamos analisar ponto a ponto. Antes de mais nada, é importante dizer que o hidrogênio natural não industrializa no sentido de fábricas, empregos e agregação de valor. Seria mais uma economia extrativista, e que pouco beneficiaria o Brasil.
Primeiro, não se tem certeza da origem desse hidrogênio subterrâneo. Não se sabe se ele deriva do manto da Terra, ou de um processo de serpentinização envolvendo minério de ferro e urânio ou se é apenas uma consequência do próprio método de extração dessas amostras, já que a perfuração com aço pode gerar, em atrito com as rochas, o hidrogênio coletado. Pode ser inclusive um pouco de tudo isso. Simplesmente, não se sabe, e quem disser hoje que sabe, está mentindo. Então, não conhecemos sequer a natureza desse hidrogênio, de onde ele vem e por que está ali, se é que está mesmo na dimensão que sugerem. Qualquer coisa nesse momento é muito precipitada. É preciso até mesmo uma discussão sobre a metodologia empregada nessa amostragem, que certamente a comunidade científica fará.
Segundo, mesmo supondo que tal hidrogênio subterrâneo não deriva do atrito dos instrumentos de exploração, resta a dúvida com respeito aos vazamentos. Esse hidrogênio viria de camadas muito profundas, o que torna sua extração bastante problemática, e não só por razões de aproveitamento do gás. O hidrogênio é um elemento altamente móvel, e ao ser mexido para exploração industrial pode escapar das profundezas da Terra por caminhos laterais ou verticais múltiplos incontroláveis, até emergir para a superfície. Estudos já demonstram com clareza que o vazamento de algumas procedências de hidrogênio em grande escala pode piorar em vez de ajudar o combate ao aquecimento global, sobretudo nas primeiras décadas, porque mantém o metano por mais tempo na atmosfera. Depois de um século tudo se normalizaria, embora não tenhamos todo esse tempo.
Já escrevemos sobre o problema entre metano e hidrogênio em outro artigo. Mas basta lembrar que o H2 no ar concorre com o metano pelo radical de hidroxila (OH), o que impede a “faxina” da atmosfera. O H2V é o único que tem benefício climático assegurado porque sua descarbonização é muito maior do que os demais tipos de hidrogênio, e mais do que compensa bastante os vazamentos. Afora o fato do H2V descarbonizar significativamente mais, mesmo se houvesse vazamentos descontrolados, tais escapes de hidrogênio verde, na prática, podem ser facilmente remediados com sensores em dutos e áreas de armazenamento, e logo corrigidos os danos. Todavia, em ambientes geológicos profundos fica muito mais difícil evitar desastres maiores, e silenciosos. Em matéria de risco de vazamentos e piora do calor global, o hidrogênio branco só não é potencialmente mais deletério do que o hidrogênio azul e cinza.
Terceiro, mesmo tendo superado os dois pontos anteriores, após muitos estudos, ainda restaria dúvida com relação à viabilidade econômica, e até mesmo técnica, de extrair um hidrogênio tão profundo. É muito difícil saber se esses poços, ainda que sejam verdadeiros, servirão de fato como reservatórios em escala industrial viáveis para os negócios. Sabe-se que um reservatório subterrâneo de gás precisa ter cerca de 1/3 do seu conteúdo intocável apenas para manter a pressão extrativa. Ou seja, somente 2/3 desse hidrogênio poderiam ser de fato explorados, e em locais muito específicos. Os próprios entusiastas do hidrogênio natural reconhecem que a maior parte dele se encontra em locais inacessíveis. O que não dizem é que mesmo onde talvez um dia ele possa ser acessível, ainda precisaremos saber se é viável do ponto de vista econômico. Não temos quaisquer dados sobre a real eficiência desses reservatórios.
Quarto, e talvez ainda mais importante, o hidrogênio geológico não é renovável, e não podemos com ele aproveitar o excedente de energia das fontes primárias eólicas, hidráulicas e solares. Esse ponto merece bastante atenção. O hidrogênio deve ser pensado como uma peça chave do quebra cabeça na transição energética, uma peça complementar fundamental que se encaixa às demais fontes de energia e insumos industriais. O hidrogênio não deveria a princípio ser pensado como fonte primária porque isso aumenta os custos gerais, gerando desperdícios em setores que já estão aí crescendo e descarbonizando bem. Grande parte da descarbonização virá mesmo da eletrificação com uso de baterias e bombas de calor, ou fonte de energia elétrica direta. E essa eletrificação exige muito mais usinas eólicas e solares com um caráter intermitente. Os picos de geração dessas novas fontes precisam encontrar uma forma de serem armazenados e não desperdiçados para que o modelo de negócio e a economia pós-carbono façam sentido como um todo na matriz energética e na economia. A única forma de aproveitar excedentes elétricos é com o hidrogênio verde. Nesse sentido, o hidrogênio natural, ainda que bem-intencionado, hoje atrapalharia na prática a nova economia sustentável.
É importante notar ainda que não sabemos sequer qual será o efeito no equilíbrio climático da Terra tirarmos tanto hidrogênio “novo” do subsolo, que levaria centenas ou milhares de anos para chegar à superfície se fosse mantido quieto nas profundezas. Além do metano, pode mexer com o regime de chuvas, pode aumentar a quantidade de vapor d´água no ar, o que também aquece o planeta. Outros transtornos podem ser gerados que desconhecemos. A própria elevação do gás tão profundo muito possivelmente modificasse a natureza do hidrogênio, transformando-o em outra coisa, ainda mais nociva. Existe um equilíbrio dessas moléculas na atmosfera, nitrogênio, oxigênio, carbono, etc. O hidrogênio verde não afeta em nada esse equilíbrio atmosférico porque deriva da água num ciclo natural, ajudando apenas a diminuir a quantidade de emissões de substâncias que absorvem muito calor e aquecem o planeta. O hidrogênio que entra é o mesmo que sai no H2V. Da água vem e para a água volta. Já o hidrogênio natural impactaria esse equilíbrio, e por essa razão também não é sustentável, com um volume adicional de centenas de milhões de toneladas de hidrogênio branco todo ano no meio ambiente.
Acredito que todos esses desafios com respeito ao hidrogênio geológico poderão quem sabe um dia ser superados com mais conhecimento. Mas é preciso muito mais estudos, mais cautela e bem mais tempo para isso. Vai levar muitos anos para podermos dizer que superamos esses desafios listados acima, anos que a humanidade não pode esperar. Se todos esses obstáculos ligados ao hidrogênio branco forem de fato superados de modo a podermos contar com ele de forma efetiva, será realmente ótimo e bem-vindo. No entanto, não podemos esperar mais 10 ou 15 anos para começar a implantar o hidrogênio limpo. Temos que fazer isso imediatamente para o bem da civilização. Já há tecnologia madura. A produção do hidrogênio verde é algo inquestionável hoje do ponto de vista técnico, ambiental e econômico. Deixemos então as pesquisas sobre hidrogênio natural prosseguirem, mas sem interromper ou retardar em mais nem um dia a implementação do H2V na matriz energética em transição.
Finalmente, é legítimo se perguntar como iremos armazenar o melhor armazenador de energia limpa que existe, isto é, o hidrogênio verde. Não há dúvida de que o H2V é a melhor forma de guardar energia elétrica renovável, e a única forma de armazenar por períodos mais longos, sem emitir carbono diretamente nem destruir florestas. No início, o H2V pode ser armazenado em reservatórios externos, tanques na superfície, porque a produção será ainda pequena. Quando a produção começar a atingir volumes maiores, o hidrogênio verde pode ser guardado em cavernas de sal, poços de hidrocarbonetos esgotados, e meios porosos no subsolo. Nesse caso, não teremos um hidrogênio natural subterrâneo, mas uma reserva artificial subterrânea de hidrogênio, cuja localização estará bem distribuída por todo o mundo. E principalmente nos principais mercados consumidores do hidrogênio verde, que precisarão criar grandes reservas desse novo gás por medidas de segurança energética. Pelo Mapa acima, vemos com clareza que tanto os EUA quanto a Europa dispõem de cavernas de sal em abundância. No Brasil, há menos, mas seremos exportadores e não armazéns. Nossa vocação é produzir e, a deles, armazenar. O H2V produzido pela SL Energias em Icatu, por exemplo, precisará ficar bem pouco tempo guardado antes de já ser consumido ou embarcar para o exterior.
A melhor forma de armazenar o hidrogênio verde em grandes quantidades é em cavernas de sal, pois evita vazamentos e metamorfoses moleculares. Mas onde não há tais cavernas, pode-se usar os meios porosos subterrâneos sobretudo em bacias sedimentares como a de Icatu do Maranhão, simplesmente perfeita para armazenagem em grande escala. Seriam obviamente necessários cuidados como os que existem nos reservatórios de gás natural, sobretudo para evitar contaminações microbianas sobre o hidrogênio. Mas dependendo do projeto de hidrogênio verde, esse gás não ficaria muito tempo guardado, o que facilitaria bastante. Aliás, embora ainda não existam tanques subterrâneos 100% hidrogênio, já existem reservatórios com 50% de hidrogênio e funcionam perfeitamente. A parte mais problemática dessas reservas é o metano, que deixaria de existir ou de ser explorado com a nova matriz energética. Esse hidrogênio subterrâneo fabricado não teria os riscos apresentados pelo hidrogênio geológico profundo. O único risco de vazamento seria também bastante atenuado. Portanto, vamos deixar o hidrogênio branco para os pesquisadores e nos concentrarmos agora na fabricação massiva do hidrogênio verde, que está pronto para fazer o seu trabalho.
Publicado em 07/03/2024