Marcelo Coutinho, Professor Doutor e Coordenador do curso de hidrogênio verde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. E-mail: prof.marcelo.coutinho@gmail.com
Em 28 de novembro 2023, a Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade o marco legal e a política nacional do hidrogênio. Feito inédito uniu governo e oposição. No mesmo momento, o Maranhão instituiu sua política estadual de incentivo à produção do hidrogênio verde para estimular o uso do novo combustível e matéria prima para a indústria no âmbito da Política de Tributação Ecológica do estado, que entrará em vigor em 2024. Não foi coincidência. O Brasil será a maior potência energética do mundo na era da sustentabilidade, e o Maranhão será a capital mundial do hidrogênio verde. Todos preocupados com as mudanças climáticas e atentos às oportunidades de grandes negócios esperavam ansiosamente por isso, e finalmente a regulamentação do setor começa a virar realidade jurídica e de políticas públicas. Todavia, alguns ajustes ainda precisam ser feitos.
A matéria no Congresso agora segue para o Senado Federal, que deve colocar para a votação o substitutivo da Câmara aos projetos de lei número 2308, 3452 e 4907 de 2023, ao mesmo tempo em que concilia com os seus próprios projetos em tramitação na casa. Os senadores provavelmente votarão antes do recesso do fim do ano, pois o marco legal do hidrogênio já demorou tempo demais, fazendo o país perder a primeira grande rodada internacional de investimentos em 2023. Se demorar mais alguns meses, o Brasil corre sério risco de perder a segunda leva de investimentos globais, o que faria praticamente o país ficar de fora do pódio mundial por culpa exclusivamente sua. O Presidente Arthur Lira foi o principal artífice da aprovação na Câmara, e o mesmo deve acontecer com o Presidente Pacheco no Senado após o seu retorno da conferência do clima em Dubai, COP28, que acabou sendo o principal estopim para a regulamentação do novo setor. O mundo só fala em hidrogênio vede.
O projeto aprovado pela Câmara foi um grande passo, pois rompeu com a inércia legislativa que prendia o hidrogênio verde desde o primeiro semestre. Porém, o governo solicitou a retirada dos incentivos tributários do projeto de lei na última hora, o que prejudicará bastante o desenvolvimento dessa nova indústria se não for revertido no Senado. Embora alguns lugares mais competitivos como o Maranhão consigam se desenvolver mesmo sem tais subsídios, não resta dúvida que a falta de incentivos fiscais numa área completamente nova afastaria boa parte dos investimentos. No Ceará, por exemplo, os projetos de lá ficaram agora seriamente ameaçados, e por isso mesmo a bancada do Nordeste deve atuar conjuntamente para restabelecer no texto final as desonerações. Se os senadores nordestinos em peso pressionarem e votarem juntos, tais incentivos devem ser recolocados, tirando os subsídios dados às térmicas a carvão pela Câmara, liderada pela bancada do sul e sudeste.
Do ponto de vista técnico e estratégico, o projeto aprovado na Câmara tem pontos positivos, mas também problemas que podem ser agora corrigidos pelo Senado. Alguns serão retificados, outros não, até porque não podemos mais perder tempo. A pressão corporativa de outros setores claramente temerosos de enfrentar no mercado o H2V fez com que subtraíssem o verde do nome do hidrogênio no texto da Câmara, onde estados como São Paulo têm mais força e interesse em fazer tudo parecer a mesma coisa, que definitivamente não é. Em que pese essa distorção conceitual ser um erro para o país, acabará não tendo o efeito desejado por quem ainda resiste às mudanças extremamente necessárias diante do aquecimento global. Isso porque o hidrogênio inorgânico renovável (HIR ou H2V) é mesmo muito mais competitivo do que os hidrogênios orgânicos (etanol e gás natural) e também muito mais aguardado pela comunidade internacional, que espera ansiosamente pela produção brasileira do hidrogênio genuinamente verde, e não esses outros tipos emissores de carbono.
O conceito de hidrogênio de baixo carbono foi criado para confundir com o falso argumento de que é mais moderno ou atualizado. Na verdade, apenas atrasa a descarbonização, e talvez nem isso. O texto da Câmara prevê a redução do limite máximo de emissão a partir de 2030. Isso significa que na prática os hidrogênios fósseis e de biomassa acabarão ficando para trás com o tempo. O mundo lá fora já estabelece 2 kg de CO2 por quilo de H2, e já começou a colocar limites também ao metano. Nos EUA, na Europa e na Índia, por exemplo, é assim. Aqui no Brasil ficou o dobro disso, 4 kg de CO2 por quilo de H2, apenas para poder incluir na lei a captura e armazenamento de carbono por parte da indústria do petróleo e gás, e também para atender a demanda dos usineiros, já que dificilmente o etanol poderia alcançar o limite internacionalmente padronizado. Ninguém no exterior vai comprar hidrogênios orgânicos do Brasil. Todos só têm interesse pelo inorgânico renovável porque ele é o único zero carbono, e que pode ser gerado em escalas hiperbólicas. Não desmata, não emite na produção nem no consumo. Já hidrogênio do etanol desfloresta, compete com alimentos, e o hidrogênio azul além de emitir dióxido de carbono na produção e vazamentos, calcula-se agora que emita também mais metano que o próprio hidrogênio cinza.
Todas as consultorias internacionais sérias são unânimes em mostrar que o hidrogênio verde será muito mais fabricado e comercializado do início ao fim em relação ao hidrogênio azul (do gás natural). A seguir, deixo um gráfico como ilustração. O hidrogênio musgo (da biomassa) nem é considerado no exterior apesar das tentativas do Itamaraty. Mas no Brasil tem muita influência, muito lobby. Por isso sumiram com o verde na lei para tentar evitar o inevitável que é a superioridade do hidrogênio eletrolítico. O importante mesmo é que agora estamos bem perto de ter o marco legal no Brasil, e assim destravar os investimentos. Além disso, diante da tradição enraizada dos biocombustíveis no país, já era esperado que eles fossem também incluídos no plano de transição energética nacional, embora não faça qualquer sentido transformá-los em hidrogênio porque emitem do mesmo jeito carbono, e apenas perderiam eficiência energética com a reforma do etanol. O risco aí é pressionar nossos biomas ainda mais com as plantações de cana e milho com esse fim.
Particularmente, receia-se que a Agência Nacional do Petróleo (ANP), escolhida para ser a agência reguladora do hidrogênio pelo projeto da Câmara, possa acabar sendo um obstáculo ao desenvolvimento do hidrogênio verdadeiramente verde no país, ao privilegiar as empresas tradicionais de combustíveis com as quais já se relaciona e tem afinidades óbvias, a partir de várias linhas de ordenamento ou simplesmente atrasando processos de admissão. É preciso ver isso com bastante cuidado. A bancada de senadores do Nordeste deveria fazer ao menos alguma ponderação quanto a isso, no sentido de garantir por algum dispositivo legal que as empresas renováveis não sejam prejudicadas, pois isso significaria uma sabotagem à transição energética nacional em benefício do status quo. Ademais, os incentivos à importação de peças, máquinas e equipamentos devem também ser reintroduzidos no texto, haja vista viabilizarem a neoindustrialização do país.
Tirar os incentivos tributários para uma indústria nascente de ponta é sabotá-la, ainda mais num país que dá cerca de 120 bilhões de subsídios por ano para os combustíveis tradicionais. O Ministério da Fazenda foi quem pressionou pela retirada dos incentivos do marco legal do hidrogênio aprovado na Câmara, mas não se esforçou da mesma maneira para impedir no dia seguinte a prorrogação até 2050 dos subsídios às térmicas a carvão, o que demonstra não só uma grande contradição como também suas verdadeiras prioridades que vão além da questão fiscal e mais atreladas à defesa dos interesses de estados do sul e sudeste. É muito simples, o subsídio ao carvão inserido indevidamente no projeto de lei das eólicas offshores na Câmara deve ser transferido para o hidrogênio limpo. Cabe ao Senado agora fazer essa correção com a ajuda do governo.
Além disso, vale notar que o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten) no final das contas não foi ainda aprovado apesar da promessa do Presidente Lira, e de novo por causa do Ministério da Fazenda que impediu que isso acontecesse. O Paten, como já escrevemos aqui em outro artigo, é uma forma robusta de alavancar os investimentos para o hidrogênio verde, ainda mais se a lei fizer quotas privilegiando os projetos com menor grau de emissão de dióxido de carbono e metano. A reforma tributária até agora é a única garantia de um regime especial para o novo combustível e insumo industrial no país, e não foi com a ajuda da Fazenda que se obteve essa vitória, muito pelo contrário, mas por intermédio de uma articulação precisa da bancada nordestina no Senado. Em resumo, houve avanços nesse fim de ano no marco regulatório, mas muita coisa ainda precisa ser feita e aprimorada em tempo hábil. Ao final, listo a agenda prioritária para a regulamentação do H2V.
Agenda do hidrogênio verde por ordem de prioridade:
- Garantir o regime especial do setor na Reforma Tributária;
- Isenção do ICMS (a exemplo do que o Maranhão fez com o biogás);
- Isenção do PIS/PASEP e COFINS de importação;
- Cláusula de celeridade e não discriminação na ANP de empresas renováveis;
- Adicionar limite ao metano além do dióxido de carbono nas emissões;
- Aprovar o marco legal e promulgar a lei do hidrogênio em 2023;
- Aprovar o Plano de Aceleração da Transição Energética (Paten).
- Aprovar e promulgar a lei das eólicas offshore sem isenções ao carvão.
Publicado em 4/12/2023