Modelagem de negócios em hidrogênio verde

Marcelo Coutinho, analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com

Diferentemente do petróleo, o hidrogênio verde é fabricado. O fato de ser um bem industrial – e não um produto extrativista – torna o hidrogênio verde um elemento fundamental para os processos de reindustrialização no século XXI. Até mais que a inteligência artificial que vem revolucionando as tecnologias de informação e redes, e gerando relocalizações dos espaços industriais, o hidrogênio verde revoluciona a energia, base da qual tudo depende, inclusive as centrais de dados. Além de ser uma revolução energética que salva o mundo do aquecimento, o H2V também modifica de forma profunda a indústria, geográfica e estrategicamente, porque não é somente um novo insumo essencial que descarboniza, mas ainda por cima um novo método de produção com consequências georreferenciadas para todo o mercado.

No modelo tradicional, o petróleo e os seus derivados chegam para a indústria como algo geralmente externo numa lógica de divisão internacional do trabalho, com especializações bem separadas. Na maioria das vezes vem inclusive de muito longe. O diesel e o fertilizante usados no Brasil, por exemplo, vêm da Rússia em grande medida. Já no caso do hidrogênio verde, a produção deve estar preferencialmente perto dos parques industriais ou do seu consumo. O H2V é nesse sentido interiorizado na capilaridade industrial. Seus derivados como a amônia ou o metanol verde podem ser mais facilmente exportados, mas mesmo assim isso não modifica o fato de o hidrogênio verde se distribuir mais uniformemente pelo mundo.

No modelo de produção petrolífero, o insumo é extraído em um lugar distante e exportado, atravessa oceanos para então ser usado em uma infinidade de outras áreas da economia global como se ele estivesse exposto numa prateleira de maneira indiferente. Já no modelo de produção do hidrogênio verde, o insumo se transforma em uma etapa do próprio processo industrial finalístico. Ou seja, o H2V não fica numa prateleira do mercado internacional à espera de quem o compre de forma indiscriminada, mas em vez disso está fortemente ligado à produção de um outro setor específico ou zona local de abastecimento. O hidrogênio verde pode até se transformar numa commodity, mas ele não se comporta como uma, assemelhando-se mais à lógica da indústria do cimento do que a da soja para citar dois parâmetros.

Vejamos um caso concreto. Uma mineradora usa os derivados do petróleo em seus caminhões, trens, navios e máquinas pesadas. Esse combustível tradicional pertence a um outro setor que não tem nada a ver com mineração. Assim, petroquímica e mineração trabalham como mercados separados em complementariedade instável. Por outro lado, uma mineradora que usa o hidrogênio verde ou os seus derivados não só pode como deve sempre que puder atrelar a produção desse novo combustível à sua própria produção finalística como é o caso da Fortescue na Austrália. Em termos práticos, isso significa que, por exemplo, a Vale fará o seu próprio hidrogênio para mover seus veículos ou, melhor ainda, contará com uma empresa parceira muito próxima das suas estações porto-ferroviárias para fazê-lo a um preço menor, quase que numa sociedade ou relação umbilical segura, em vez de importar diesel da Rússia a um preço muito caro que ela não controla.

A interdependência de um produtor e um consumidor de H2V é muito superior à relação existente entre produtores e consumidores de petróleo. No entanto, essa interdependência local maior do H2V tornará o seu mercado internacional muito mais estável, pois a dependência que se tem em relação ao petróleo desequilibra o mercado para um lado e gera enormes distorções. A produção do petróleo é altamente concentrada em algumas regiões do mundo. É praticamente um oligopólio, uma falha de mercado, para usar o termo técnico. Alguns poucos países produzem, e a grande maioria das nações é refém inclusive de humores políticos desse oligopólio. Não é preciso aqui lembrar o quão instável é esse mercado, com guerras e terrorismo interferindo nos preços e no abastecimento a todo momento. Já o hidrogênio verde será descentralizado, desconcentrado. Praticamente será produzido em toda parte do mundo, ainda que alguns lugares como o Maranhão sejam campeões naturais por razões que nós já explicamos em diversos outros artigos.

O hidrogênio também será exportado-importado porque nem todos os países serão autossuficientes, mas esse comércio internacional ocorrerá numa proporção muito menor comparado ao petróleo. A competição em torno do H2V será muito mais acirrada, para o benefício de todos. Vencerá quem tiver posse dos melhores projetos. As modelagens de viabilidade sempre foram muito importantes em todos os setores da economia. Porém, a modelagem dos negócios em hidrogênio verde assume uma centralidade absoluta. Quem dominar essa modelagem dominará o mercado local, e quem vier a dominar o mercado local, acabará naturalmente prevalecendo também no mercado regional. E, por fim, quem prevalecer no mercado regional, influenciará mais o mercado global desse novo combustível verde que moverá o mundo. H2V é o nome do novo jogo, e sua modelagem são as regras que definem a concorrência.

Publicado em 02/09/2024

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