Marcelo Coutinho, Professor da UFRJ e Analista Sênior de Hidrogênio. Prof.marcelo.coutinho@gmail.com
Muitas questões são levantadas sobre o hidrogênio verde (H2V), o que é bastante natural por ele ser considerado cada vez mais o combustível do futuro. Então, vamos listar abaixo algumas dessas perguntas mais frequentes, seguidas por respostas tão concisas e simples quanto possível. Comecemos por esclarecer quanto à transição energética.
1) Por que o H2V é visto como o combustível do futuro?
Em primeiro lugar, o hidrogênio verde já é uma realidade em muitos países. Projetos em diferentes partes do mundo estão sendo colocados em prática com a instalação de fábricas que produzem o H2V. Ele é considerado o combustível do futuro por causa da sua capacidade de substituir os combustíveis fósseis em quase tudo que eles fazem sem, no entanto, emitir carbono, nem na forma de CO2, metano ou qualquer outro.
2) Mas por que os combustíveis fósseis precisam ser substituídos?
O uso do carvão, petróleo e gás natural emite muito carbono na atmosfera, o que tem agravado progressivamente o efeito estufa responsável pelo aquecimento da Terra. As mudanças climáticas são consequência desse aquecimento e uma ameaça real à sobrevivência da civilização. Por isso mesmo a comunidade internacional está começando a transição energética para evitar que as catástrofes ambientais e a elevação do nível do mar pelo descongelamento cheguem a um patamar sem retorno.
3) Mas, afinal, o que é o hidrogênio verde?
O H2V é uma molécula renovável inorgânica, extraída da separação das moléculas H2 e oxigênio da água, mediante um catalisador ligado a uma corrente elétrica oriunda de energia limpa, isto é, dos ventos, do sol, dos cursos d´água e do próprio calor da Terra, ou em termos técnicos, energia eólica, solar, hídrica e geotérmica, respectivamente. É um gás transparente inflamável sem cheiro nem toxidade, mas também pode estar em forma líquida, quando deixa de ser inflamável.
4) E qual a vantagem dele além de despoluir?
Além de despoluir, emitindo apenas vapor d´água sem qualquer resíduo no ar, o hidrogênio verde é mais abundante, inesgotável, descentralizado, tem grande densidade energética, não adoece e ainda por cima pode reindustrializar os países, gerando muita riqueza nova e empregos, representando um verdadeiro salto tecnológico. É ainda por cima mais versátil que as outras formas de energia limpa. É armazenável, constante, pode ser transportado e até exportado pelo mar.
5) Mas o que o difere das demais renováveis exatamente?
O hidrogênio verde é a peça central que faltava no quebra cabeça da transição energética. Tem qualidades que faltavam às demais energias limpas. Sua versatilidade o permite ser utilizado para descarbonizar tanto os transportes como também os processos industriais e instalações, servindo como combustível e matéria prima para muitos produtos como o aço. E sobretudo o H2V resolve o problema da intermitência entre as renováveis, não tem aquelas oscilações de energia que podem gerar ineficiência em momentos de pico. Ele estoca energia limpa de uma forma primorosa. É despachável e a única que pode realmente se tornar commodity. Sem o H2V, desperdiçamos a maior parte do potencial energético dos ventos, sol e marés.
6) Mas isso aí os biocombustíveis já não fazem?
Não, não fazem. Para começar, os biocombustíveis emitem carbono. Eles são combustíveis orgânicos, logo emitem carbono. O etanol, por exemplo, desmata muito, já desmatou direta ou indiretamente algo como o tamanho do estado do Rio de Janeiro nos últimos anos. Logo, os biocombustíveis são parte da solução e parte do problema. A mudança do uso da terra é o segundo maior emissor de carbono global e o primeiro no país. Para atender a demanda de substituição dos combustíveis fósseis, teríamos que desmatar o Brasil inteiro para poder dar conta com os biocombustíveis. Além disso, esse tipo de energia não serve de matéria prima para descarbonizar os processos industriais e muito menos evita o desperdício das demais fontes renováveis. Nunca conseguiu se tornar commodity, e é visto com grande desconfiança também porque concorre com a produção de alimentos.
7) As baterias de carros elétricos não seriam melhores?
Para carros pequenos dentro da cidade, provavelmente, sim. Para veículos maiores, para andar na estrada a longas distâncias e para os processos industriais, definitivamente não. Para trens de carga, caminhões superpesados, navios e aviões, o H2V sem dúvida é uma forma muito melhor de armazenar energia do que as baterias. O hidrogênio é bem mais leve, flexível, ágil, dá muito mais capacidade de autonomia e tem mais poder calorífico. Pode ser utilizado tanto em motores elétricos como a combustão. Além disso, as baterias não ajudam em nada a descarbonizar a siderurgia, por exemplo. O hidrogênio é amplamente mais útil. Não à toa, é conhecido como o combustível universal. E bem mais limpo do que as baterias!
8) O H2V não tem nenhum defeito?
O principal defeito é ser tão bom que causa medo em grupos econômicos poderosos que receiam ser superados. Isso acaba gerando atrasos que podem custar muitas vidas e boas oportunidades de negócios. Mas não é só isso. O custo ainda é muito caro, embora vá cair à medida em que ganhar escala, for mais produzido. Também ocupa muito espaço. Tem mais densidade energética por unidade, porém, menos por volume. E por isso mesmo precisa ser bastante comprimido em recipientes de gás ou liquefeito a temperaturas muito baixas. Por ser muito volátil e inflamável na forma gasosa, também requer maiores cuidados de segurança. Mas tudo isso é administrável e encontra soluções técnicas.
9) Dizem que ele é pouco eficiente, isso é verdade?
Depende do que entendemos por eficiência. O hidrogênio verde devolve quase 70% de toda a energia elétrica que consome. Isso é ser eficiente de forma satisfatória. Por outro lado, se for exportado em forma de amônia verde, sua derivada, ou outro transportador molecular e depois reconvertido de volta a hidrogênio, aí a eficiência cai mesmo bastante. No entanto, é importante lembrar que sua eficiência energética está aumentando com novos catalisadores e procedimentos. Espera-se que em pouco tempo, dois anos ou menos, a eficiência suba para mais de 80%. Agora, se incluirmos na discussão sobre eficiência o desperdício das fontes eólicas e solares, aí podemos concluir que o H2V é altamente eficiente porque aproveita os excedentes desses parques já instalados e permite o uso de toda capacidade energética natural inexplorada. Sem o H2V, o Brasil joga fora cerca de 25% dos picos de geração renovável e deixa de aproveitar 98% das suas capacidades eólicas, incluindo o mar. Então, ineficiente é não fabricar H2V.
10) E a água, o H2V consome muita água?
Consome, sim, muita água limpa, nove litros por quilo. Mas essa água retorna toda para a natureza depois, sem qualquer prejuízo. O H2V devolve 100% da água da qual extraiu sua molécula quando é utilizado. O processo é bem fácil de entender, porque é natural. O H2V emite vapor d´água em contado com o oxigênio do ar. Esse vapor sobe, forma nuvens, chove e a água então é depositada de novo nos rios, oceanos, lagos, lagoas, córregos, aquíferos e outros subterrâneos. Se o hidrogênio verde for utilizado na mesma cidade ou estado onde foi produzido, a água retorna exatamente para o mesmo lugar de onde partiu num ciclo sustentável perfeito. E se for exportado, não será a primeira indústria a mandar muita água nacional para fora do país. A agroindústria faz isso há décadas, trocando a nossa água por recursos financeiros importantes para o Brasil.
11) OK, mas não tem risco de esgotar a água nesses casos?
Não tem risco se a fábrica de hidrogênio verde estiver produzindo onde tem muita água abundante e intenso regime de chuvas como o Maranhão. E sim, se o H2V estiver sendo fabricado em estados secos, que padecem com a escassez crônica de água. Onde tem histórico de seca não é o melhor lugar para se produzir hidrogênio verde porque agrava conflitos, é socialmente injusto, tem risco hídrico alto. A população morrendo de sede, e a alguns quilômetros dela muita água sendo tratada para exportar H2V. Isso é insustentável, e deve piorar o estresse hídrico. Então, o ideal é produzir H2V onde o problema principal é com o excesso de chuva, alagamentos periódicos, como no Maranhão, e não onde há falta de chuva para abastecer boa parte da população e do próprio ecossistema do lugar. Dito isso, não podemos esquecer que o aquecimento global agrava tanto os problemas de onde chove muito como de onde há seca. Então, bom mesmo é produzir hidrogênio verde onde for possível.
12) Sobre os preços, o H2V é mesmo muito caro, inviável?
O hidrogênio verde é plenamente viável, de qualquer ponto de vista, econômico, ambiental e tecnológico. E quanto aos preços hoje, ainda é mais caro que os combustíveis convencionais porque é pouco produzido. Com o tempo, vai barateando como aconteceu com todo tipo de nova tecnologia e combustível, inclusive com o petróleo, que até hoje vive de subsídios bilionários do governo. O H2V é, portanto, um falso caro, em alguns anos será muito barato. Tem um prêmio ambiental hoje que vale a pena pagar para começar a produzir imediatamente.
13) Mas o H2V não é uma alternativa cara para o consumidor?
Vamos pegar como comparação um carro de marca mundialmente famosa que está circulando pelos continentes com a versão H2V. Vou omitir o nome para não parecer propaganda. Esse carro na sua forma tradicional a diesel gasta 300 reais de combustível para percorrer 500 km, usando 48 litros do seu tanque. O mesmo carro a hidrogênio gasta apenas 180 reais para percorrer o mesmo tanto com 6 Kg, numa economia de 120 reais ou de 40% do seu dinheiro. Vejamos agora modelos de caminhões pesados equiparáveis. Um truck a diesel gasta em média 3 reais por Km rodado, enquanto um modelo equivalente a H2V gasta 2,4 reais por Km. Também sai mais barato para o consumidor. Em 1.000 Km rodados, o caminhão a diesel gastará 3 mil de combustível, e o mesmo caminhão H2V gastará 2.400 com um tanque de 80 Kg, economizando, assim, 600 reais ou 20% do que o motorista gastaria.
14) E onde vamos abastecer com esse novo combustível?
Em um posto na rua ou na estrada, mais ou menos como é feito hoje em dia com a gasolina. Não temos postos no Brasil porque ainda estamos muito atrasados nisso no país, mas no exterior já há postos abertos para os carros abastecerem com o hidrogênio verde. Ainda são poucos, mas existem e funcionam normalmente, por exemplo, na Alemanha e nos EUA. Em 5 minutos você abastece o tanque inteiro de um carro com célula de hidrogênio, e em 15 minutos o tanque de um caminhão pesado H2V. A rede de abastecimento ainda precisa aumentar muito, e isso é uma questão de tempo. Acontecerá à medida em que produzamos o novo combustível. Mas é preciso lembrar que o H2V não é pensado prioritariamente para os carros, pois já temos os carros elétricos a bateria. Sua aplicação foca mais no transporte pesado e na indústria.
15) Mas esses veículos movidos a H2V não explodem?
Um carro a gasolina também pode explodir, e alguns explodem inclusive nos postos de abastecimento. O H2V é bastante inflamável, mas seu tanque é revestido com materiais seguros, e há sensores para eventuais vazamentos. Os veículos H2V são muito estáveis, já foram exaustivamente testados e circulam pelas ruas do mundo desenvolvido. Já temos aviões voando com hidrogênio verde inclusive, e logo teremos aviões grandes a serviço com passageiros. Essa é por sinal a principal aposta da Airbus, a maior companhia aérea do mundo. Eles não são irresponsáveis, nem todas as inúmeras marcas de veículos sobre rodas que já apresentaram seus modelos impulsionados pelo H2V. O medo do novo é normal. Todo mundo antes tinha medo também de voar. Alguns até hoje têm pavor de aviões, embora sejam muito seguros.
16) E esses tais combustíveis sintéticos?
São combustíveis novos que têm o hidrogênio verde como matéria prima básica. É com o H2V que se faz depois a gasolina sintética, o diesel sintético, o querosene sintético e assim por diante. Também são conhecidos como e-fuels ou eletrocombustíveis e-gasolina, e-diesel, e-querosene, justamente porque vêm do hidrogênio inorgânico renovável (HIR), como já o batizei porque algumas pessoas não gostam de usar o temo hidrogênio verde. É importante notar que um e-fuel é como um combustível convencional refinado do petróleo, mas que não polui porque captura carbono do ar. Eles são mais caros, porém, não precisaríamos mudar os motores dos veículos a combustão, e o transporte seria mais fácil. Tem também o metanol verde, outra variante do H2V, e já está sendo usado em navios.
17) E porque alguns não gostam de usar o nome hidrogênio verde?
Para confundir querem misturar todo tido de hidrogênio. Tem diferentes tipos de hidrogênio, de acordo como é fabricado e seus insumos, e o único que não emite carbono é o H2V. Então, acabar com as cores disfarça a poluição, enganando consumidores e investidores. Mas essa tentativa de misturar tudo é inútil. O mundo quer mesmo é o hidrogênio verde. As regulamentações internacionais, certificações e incentivos fiscais favorecem o hidrogênio verde porque ele é o único verdadeiramente limpo. O problema é que essa confusão criada com o chamado hidrogênio de baixo carbono, que dilui o verde, apenas atrasa as coisas no Brasil. O Senado tem um bom projeto de lei já aprovado na casa, mas a Câmara tem outro ruim também aprovado, e agora eles precisam se decidir. Enquanto isso, o país já perdeu a primeira leva de investimentos, e vai perdendo agora a segunda onda. O Brasil é candidato natural a liderar esse novo mercado, mas se auto sabota.
18) Tem lugar melhor para produzir o H2V do que no Maranhão?
Não, não tem. Nem no Brasil, nem no mundo. O Maranhão é o lugar perfeito para fabricar o hidrogênio verde, tem as condições ideais. É realmente algo fabuloso o que está prestes a acontecer no estado. Já escrevi muito sobre tudo que falei aqui em maior profundidade em artigos anteriores.