Pós-hype, e a Ferrari vai de hidrogênio verde.

Marcelo Coutinho, Professor doutor da UFRJ e analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com

Meses atrás, algumas pessoas começaram a se perguntar se o hidrogênio verde não passava de uma moda ou mesmo de uma bolha financeira. Passados já, mais ou menos, 2 anos em que só se fala do novo combustível e insumo industrial é natural esse questionamento, ainda mais que os projetos demoram a sair do papel no mundo todo, e principalmente no Brasil, um dos lugares onde havia mais expectativas. Porém, o fato é que o tempo passou, e o hidrogênio verde (H2V) continua no noticiário como a maior promessa de transição energética global. Os ônibus movidos a hidrogênio, por exemplo, se espalham por toda a Europa. Novos relatórios públicos internacionais e privados saíram este ano e reforçam que o H2V é inevitável por mais que se demore a implementá-lo. Não há muitas opções tecnológicas eficazes além do hidrogênio, em alguns setores não há nenhuma alternativa.

Em síntese, não há substituto ao hidrogênio verde para descarbonizar grande parte da economia, e o problema do aquecimento do planeta avança para patamares muito preocupantes realmente. Essas são questões objetivas. O único empecilho ao H2V é ainda o preço, por causa da sua pouca produção, mas não há outra solução senão ele. As baterias, líquidas ou futuramente sólidas, resolvem parte do problema ligado ao transporte, mas estão longe de resolverem tudo até mesmo no campo da mobilidade, e muito menos na indústria. Portanto, mesmo com toda a resistência dos setores tradicionais, que ainda se iludem com um mundo dominado indefinidamente pelo petróleo, o fato é que pouco a pouco o hidrogênio verde avança.

Fora as grandes petroleiras, sobretudo as americanas, árabes e russa, as empresas em geral começaram a se adaptar às mudanças pós-carbono. Com raras exceções, não há fabricante de carros que não tenha um projeto a hidrogênio já bem desenvolvido. Embora o H2V não seja prioritariamente para mover os carros pequenos, mas sim outros setores como trens, navios, aviões e caminhões superpesados, além de fabricar aço e alumínio verde e novos fertilizantes, por exemplo, o fato das montadoras desenvolverem modelos com H2V mostra o quanto ele é importante. A própria Ferrari acabou de registrar patente de um motor a hidrogênio, com um detalhe bem importante, a combustão.

A Ferrari é inegavelmente uma marca que define e consolida tendências. Então, se a marca está investindo de forma central no H2V é porque não deve estar de brincadeira. Além do carro que já dispunha movido a combustível sintético, que é derivado do hidrogênio verde, agora também a Ferrari terá uma versão que utiliza o H2V puro diretamente, o que muitas pessoas achavam impensável até meses atrás. A patente é para garantir à fabricante posse sobre a nova tecnologia. A fabricante mundialmente famosa está emitindo um sinal muito claro: continuaremos a ter o ronco do motor, com carros a combustão de luxo, só que agora a hidrogênio verde, puro ou sintético, para não poluir e manter-se dentro das normas internacionais cada vez mais restritivas.

Não é só a Ferrari que segue dando passos consistentes em direção ao mundo do hidrogênio verde. Empresas grandes como a Vale não só iniciaram seus programas de transição energética com fontes renováveis, como também se preparam para ter sua própria fábrica de H2V. No caso da Vale, adquiriu recentemente o controle total da Aliança Energia, com a qual passa a dispor de partes eólicos no Nordeste, faltando agora apenas estabelecer uma planta de produção de hidrogênio próximo a Carajás. Assim como as fabricantes de veículos estão se autonomizando frente às petroleiras com planos para ter o seu próprio combustível, grandes mineradoras também buscam projetos que diminuirão significativamente essa dependência, o que começa a representar uma ameaça real às companhias de petróleo no longo prazo.

Entre os países, os acordos também avançam, menos no Brasil. A Alemanha acabou de fechar parcerias mais concretas com o Canadá e a Namíbia para o fornecimento de hidrogênio verde ao velho continente. Os europeus ainda esperam fazer o mesmo com o Brasil, mas diante da demora regulatória brasileira para o setor, os investimentos produtivos começam a desistir temporariamente do país, indo para outros lugares. O Brasil já perdeu a primeira onda de investimentos do H2V no ano passado, e tudo indica que perderá a segunda onda este ano também, perdido em falsas discussões e interesses internos de curto prazo.

Há uma expectativa que o Congresso Nacional aprove o marco regulatório em 2024, e que o governo federal não impeça os subsídios à indústria nascente, mas nem isso hoje é possível garantir, ainda mais com um lobby muito grande do agronegócio para retardar o quanto puderem a adoção do H2V no Brasil, com a ilusão de que o etanol e os biocombustíveis em geral serão aceitos internacionalmente. Não serão porque os combustíveis de plantas desmatam, emitem carbono e roubam espaço da produção de alimentos. Todos sabem disso, não importa o quanto a propaganda ruralista tente ludibriar a opinião pública nacional.

Do mesmo modo, a falsa propaganda do hidrogênio azul também começa a naufragar. As petroleiras americanas pressionaram muito Washington, mas o governo dos EUA, assim como os europeus, decidiu que os subsídios serão apenas para o hidrogênio verde, o hidrogênio inorgânico renovável, pois ele é o único que de fato descarboniza a economia. O hidrogênio azul não descarboniza como se imagina, e pode gerar até problemas maiores, assim como também o hidrogênio de biomassa não descarboniza e gera problemas maiores. Sobre todos esses temas específicos, o leitor poderá saber mais detalhes em artigos nossos anteriores já publicados, incluindo sobre o hidrogênio subterrâneo.

O hidrogênio verde não é um simples hype, e nem passará. Não há alternativa a ele, as mudanças climáticas pressionam mais do que qualquer outra coisa, e as legislações pelo mundo afora começarão a banir a gasolina, o diesel e qualquer outro combustível fóssil. A primeira estação desse banimento já é em 2030, e o banimento completo a partir de 2035. Ou seja, restam poucos anos para o mundo do carbono como o conhecemos. Preparados ou não, a economia vai mudar, já está mudando, ainda que lentamente no começo. O Brasil pode ser proa ou popa dessa mudança. Infelizmente, vai fazendo papel retardatário, ultrapassado por ferraris e competidores menos qualificados, com o país escolhendo o atraso em vez da inovação tecnológica que relançaria a indústria nacional.

Publicado em 2 de abril de 2024.

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