Marcelo Coutinho, Professor doutor da UFRJ e analista sênior de hidrogênio. prof.marcelo.coutinho@gmail.com
O aquecimento global está se agravando, e a transição energética segue muito atrasada. As pessoas geralmente imaginam que os problemas decorrentes disso vão demorar muito a acontecer de forma mais dramática, o que acaba fazendo com que a descarbonização das economias seja postergada em muitos lugares. A ideia de que se trata de algo que só vai explodir daqui a 100 anos é simplesmente uma falácia. As catástrofes já estão acontecendo em mais intensidade e maior frequência. E não é só isso. Há um risco crescente do caos climático se estabelecer já nos próximos anos. Um caos que mudaria de vez o mundo mais do que uma grande guerra.
O nome do risco de caos climático mais imediato é colapso da AMOC, Circulação Meridional do Atlântico, a corrente oceânica que transporta calor e nutrientes da água quente do Hemisfério Sul para o Norte, onde libera calor e congela. O processo de congelamento concentra o sal na porção não congelada da água do oceano; essa água extra-salina e mais fria afunda, viaja de volta para o sul e recupera calor novamente, reiniciando a correia transportadora. É esse fenômeno natural que mantem mais amenas as temperaturas na Europa e, em certa medida também na América do Norte.
Nos últimos 100 mil anos, a AMOC simplesmente parou abruptamente, levando a grandes mudanças climáticas ao longo de poucas décadas. Estudos científicos revelam que o aquecimento global que derrete as geleiras e dessaliniza as águas está desacelerando a corrente marítima, que pode, assim, entrar em colapso a qualquer momento. Os cientistas descobriram um sinal de alerta importante antes que se cruze um ponto sem volta no Atlântico e se provoque um verdadeiro caos climático. Estudo publicado na Science Advances, revela que o fluxo de água doce no Oceano Atlântico a uma latitude de 34 graus sul (a latitude onde fica a África do Sul) pode indicar o colapso iminente da AMOC. Os cientistas descobriram que cerca de 25 anos antes do colapso da AMOC, esse fluxo atinge o mínimo.
Ainda não é possível dizer quando exatamente vai ocorrer o ponto de virada para o colapso, mas apenas que ele está se aproximando. Como a subida e descida da AMOC depende da salinidade da água, esta circulação é muito sensível aos influxos de água doce, sobretudo provenientes do degelo acelerado no Ártico e na Groenlândia. À medida que o clima aquece e os padrões de precipitação mudam, os padrões de fluxo de água doce para o oceano também mudam, alterando consequentemente o equilíbrio energético de todo o hemisfério.
Fonte: Coutinho, fevereiro de 2024.
Tomando como base os estudos científicos sobre o assunto, é possível fazer projeções dos riscos para se compreender o quão próxima se encontra a ameaça e as chances de o mundo mergulhar num cataclismo climático de gigantescas proporções. No Gráfico 1, assumindo como pressuposto que a AMOC tem 95% de chance de colapsar até 2095, como definido pelos pesquisadores da Universidade de Copenhague, e que já teríamos 10% de risco a partir de 2025, delineei uma progressão das probabilidades que servirá como parâmetro de análise. De acordo com essa progressão, em 1958 a AMOC terá 50% de chance de parar. Isso, claro, se não tiver parado antes. Daqui a apenas 10 anos, a probabilidade de colapso é de pelo menos 21%, o que parece já bastante arriscado para um evento dessa magnitude.
Fonte: Coutinho, fevereiro de 2024.
No Gráfico 2, acrescentei uma progressão um pouco maior para servir de banda superior de riscos, já que os estudos científicos têm estado sempre atrás da curva das mudanças climáticas com prognósticos atrasados e muito otimistas do avanço do aquecimento global. Basta lembrar que os cientistas projetavam inicialmente o aumento de 1,5 graus na temperatura da Terra só para daqui a 10 anos, e como se sabe, e fomos os primeiros a noticiar isso aqui, o mundo alcançou esse patamar já em 2023. Nesse segundo cenário, 50% de risco de colapso da AMOC seria superado em 2042, ou seja, em apenas 18 anos. Definitivamente, é muito pouco tempo para um risco tão alto. Por essa segunda projeção, alguém nascido ano passado certamente vivenciaria a paralisia da corrente marítima antes de envelhecer.
Fonte: Coutinho, fevereiro de 2024.
Finalmente, no Gráfico 3, destaca-se a curva em verde traçando as probabilidades de colapso da AMOC com uma transição energética bem-sucedida, isto é, que fosse capaz de descarbonizar efetivamente as economias no mundo. Em tal cenário de diminuição acelerada das emissões de carbono na atmosfera, passaríamos a diminuir os riscos após chegar a 50%, precisamente em 2065. Não parece muito animador, pois afinal a ameaça ainda existiria em níveis elevados, mas é o melhor que podemos ter já que o mundo demorou demais para despertar de verdade para o tamanho do problema. Desanimador mesmo é saber que o mundo ainda não começou a reduzir suas emissões de dióxido de carbono e de metano, o que pode tornar essa curva apenas uma quimera. Está tudo muito lento na transição energética, e os riscos são crescentes.
É importante observar que a qualquer momento, a AMOC pode parar. 10% de risco para um caos climático como esse já é muito alto. Imagine ter 1 em 10 chance de morrer amanhã, e depois de amanhã, e depois e depois. Uma verdadeira roleta russa. Suponho que a maioria não gostaria de correr tanto perigo, mas infelizmente é algo a partir de agora inevitável, ainda mais retardando os projetos de transição para uma economia global pós-carbono.
As consequências de um colapso da corrente atlântica são apocalípticas, ou ao menos parte do apocalipse climático. Primeiro, a Europa e boa parte da Rússia congelariam, expulsando dezenas e mais dezenas de milhões de pessoas de cidades como Londres e Paris, porque essas capitais se tornariam tão frias quanto o Ártico, para a vingança dos ursos polares. Segundo, o nível do mar subiria até 1 metro, inundando cidades como São Luís, Recife, Rio de Janeiro e Santos, obrigando também centenas de milhões de pessoas a se mudarem, deixando suas casas para trás. Terceiro, os furacões se tornariam ainda maiores, castigando as américas Central e do Norte. Canadá e EUA seriam massacrados por secas e queimadas. E quarto, a Amazônia inverteria suas temporadas de seca e chuva, liquidando a maior parte de sua biodiversidade. A Floresta se transformaria numa savana, e o Brasil seria insuportavelmente quente, com áreas desertificadas. Mais estudos estão sendo feitos para precisar tudo isso.
Haveria outros efeitos indiretos, desencadeados por essa lista principal acima. Um deles seria a maior crise econômica global e humanitária de todos os tempos, maior do que a soma de todas as anteriores. Não é difícil imaginar que a China, por exemplo, iria à bancarrota, o que certamente ameaçaria o regime de Pequim. Um caos climático dessa magnitude geraria caos social em toda parte, lembrando que existem outros riscos relacionados ao aquecimento do planeta além da AMOC. O problema climático não se limita ao Atlântico, cujas temperaturas, aliás, tem se elevado assustadoramente nos últimos meses, como também já foi analisado aqui em outro artigo. O Atlântico – da mitologia grega Atlas, o titã condenado a sustentar os céus – é o oceano que faz a conexão entre os polos do planeta e um dos principais regulares da temperatura, esfriando onde está quente demais, e esquentando onde é frio demais, por meio de suas correntes.
É também verdade que se a Circulação Meridional do Atlântico for interrompida amanhã, todas essas transformações não ocorrerão imediatamente. Levaria algumas (poucas) décadas para a catástrofe se completar, o que por si só não é nada consolador. O congelamento do velho continente se daria em etapas, caindo progressivamente o calor. Ao contrário dos filmes sobre o fim do mundo instantâneo, seria um longo sofrimento. Já na primeira década, as temperaturas cairiam o suficiente para tornar a vida muito difícil em muitos lugares. É provável que as pessoas ainda pudessem viver no continente europeu, sobretudo mais ao sul. Haveria um novo equilíbrio regional formado no clima sobreposto ao aquecimento global quase impossível de prever, mas que traria com certeza uma grande mudança nos regimes de chuva, com alterações de até 15 graus nas temperaturas.
Ainda que o congelamento europeu fosse compensado pelo aquecimento do planeta, o que diminuiria desse modo a catástrofe por lá, o nível do mar continuaria subindo pelo degelo sobretudo no polo Sul e pela densidade da água. Países como o Brasil ficariam ainda mais quentes mais rapidamente, com ondas de calor mais mortais. Imagine se um dia os europeus entenderem que já é tarde demais para salvar o planeta como o conhecemos e que a única forma de se salvarem é emitindo mais carbono para que o efeito estufa atenue o efeito do colapso da AMOC. Um pesadelo. O que podemos dizer agora é que o perigo é iminente. O risco de testemunharmos em breve o caos climático criado por nós mesmos é maior do que seria tolerável.
Publicado em 29/02/2024