Marcelo Coutinho, Professor Doutor e Coordenador do curso de hidrogênio verde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. E-mail: prof.marcelo.coutinho@gmail.com
Em decisão histórica, a mais importante decisão que o mundo já tomou conjuntamente, duas centenas de países, incluindo a OPEP, concordaram na COP28 em abandonar os combustíveis fósseis, algo que até então nunca tinha sido decidido. Foram discussões bastante intensas na conferência internacional, mas que no final das contas culminaram em uma decisão oportuna e equilibrada, pois será uma transição energética segura, dentro das possibilidades atuais, mas ao mesmo tempo efetiva, no sentido de ter uma direção clara. Ainda que o acordo internacional não seja vinculativo, isto é, não obrigue os estados membros da ONU a cumpri-lo, ele estabelece um parâmetro que deve pressionar agora cada vez mais as forças resistentes à mudança, e incutir de uma vez por todas no cálculo estratégico de estados e empresas a transição energética para uma nova era pós-fóssil.
Trata-se de um marco fundamental na transição energética. Podemos dizer, sim, que é o início do fim da era dos combustíveis fósseis, da era em que eles dominam a matriz energética global como fazem há dois séculos. Nada acontecerá de um dia para o outro. No curto prazo, a decisão da COP28 tem pouco impacto no mercado de petróleo. Mas, no longo prazo, tudo muda. Será uma longa transformação, e todos serão cobrados para que isso aconteça, ainda que falte estabelecer melhor os cronogramas específicos e os recursos a serem pautados nas próximas conferências. Na prática, países e investidores darão cada vez mais importância às energias limpas. Não pensarão mais apenas em termos de petróleo, gás e carvão. Ou os custos de se limitarem a isso aumentarão significativamente. Pouco a pouco, os combustíveis fósseis darão lugar às novas formas de energia renovável, em particular o hidrogênio verde. Não há dúvida de que nos próximos anos e décadas, o mundo verá emergir as sociedades do hidrogênio, ainda que seja um processo não linear cheio de contradições logo na largada.
Os países se comprometeram a cumprir a transição dos combustíveis fósseis nos seus sistemas energéticos de uma forma justa, ordenada e equitativa até alcançarem a neutralidade de carbono em 2050. Acabou, portanto, a narrativa autointeressada de que “o petróleo vai continuar mandando ainda por 40 ou 60 anos”. Além das emissões de dióxido de carbono, os países também concordaram em reduzir as emissões de metano, o que afeta diretamente o gás natural e seus derivados, incluindo os hidrogênios azul e de biomassa. Além disso, concordaram também em triplicar a produção de energia renovável até 2030, o que sugere vultuosos investimentos a partir de 2024 em diante. As grandes companhias de petróleo que vinham aumentando a produção, aquisições e investimentos em combustíveis fósseis terão agora que se ajustar com mais investimentos em energia limpa do que vinham se propondo, sob pena de sofrerem prejuízos tributários, regulatórios e mesmo de novos aportes dos grandes fundos internacionais.
A questão se o acordo na COP28 foi forte ou fraco é relativa em termos do que poderá acontecer. O Acordo de Paris foi forte, e está sendo desobedecido. Melhor é examinar a questão do ponto de vista não só simbólico, que também é importante, mas também realista. O fato é que foi a primeira vez que os responsáveis pelo aquecimento global foram precisamente identificados em ambiente institucional com a participação de todos. Os discursos e narrativas que tentavam até ontem desmentir a ciência ou fingir que nada iria acontecer foram devidamente vencidos na arena política. Superada essa etapa, a transição energética ganha contornos mais nítidos com uma diretriz única que legitima ações no sentido da descarbonização, e deslegitima ações contrárias. Uma empresa ou país pode insistir nos combustíveis fósseis, mas o incentivo é, no mínimo, de diversificação com as renováveis. A espada de Dâmocles foi colocada na cabeça de quem polui, representando a insegurança de permanecer apenas com petróleo, gás e carvão.
Infelizmente, é muito provável que a situação climática piore antes de melhorar, com as emissões aumentando em vez de caírem nos próximos anos. A manobra é de um transatlântico que muda lentamente de direção. Seja como for, o comando foi dado nessa COP em Dubai, e a casa de máquinas terá que responder aos estímulos globais, com pequenas mudanças de curso que compõem toda a curva rumo agora às energias renováveis. Instituições guiam comportamentos, ainda mais quando se trata de algo tão central para a sobrevivência da civilização. À medida que os mercados de renováveis continuarem se ampliando, mais retorno vão trazer, e mais atrairão investimentos. Aqueles investidores de longo prazo a partir de agora veem riscos maiores e crescentes de depositaram seus fundos apenas em combustíveis fósseis. Será que daqui a 5 ou 10 anos, terei o rendimento esperado no petróleo, no gás natural ou no carvão como antes? Ou será melhor começar a diversificar agora, fazendo um hedge progressivo com as energias renováveis? Parece que ao menos uma atitude de proteção é mais racional.
No lugar de “oil analysts” assistiremos crescer os “hydrogen analysts”. Há agora inegável convergência de marcos legais, nacional e internacional, a favor das energias renováveis. Por sua vez, o ambiente econômico está se desenhando muito favorável também à indústria verde. E não só por causa de movimentos nas cadeias globais de valor, guiadas por novas práticas de negócios “nearshoring”, “friendshoring” e “greenshoring”. O ambiente econômico está muito propício a investimentos acionários e produtivos por causa sobretudo da mudança nas políticas monetárias, que estão entrando agora em ciclo pre-expansionista. A taxa de juros básica da economia no Brasil caiu já 2 pontos percentuais nos últimos 5 meses, e deve cair ainda mais. Ao mesmo tempo, o banco central americano, o FED, já indicou que a taxa de juros nos EUA cairá pelo menos 0,75 no primeiro semestre de 2024. Esse duplo afrouxamento monetário interno e externo é o melhor indutor de investimentos industriais que poderia haver num momento de reestruturação das economias.
Então, temos para 2024 uma situação muito positiva para negócios de longo prazo. Segurança jurídica, e estímulos regulatórios e tributários sendo deslocados na direção das energias renováveis, principalmente o hidrogênio verde pelo seu caráter industrial, e o desanuviamento monetário com juros mais baixos que devem mover investimentos de renda fixa para renda variável, são fortes determinantes de investimento. Todos os títulos americanos já estão caindo, e “bonds” de longo prazo caindo muito fortemente. Com os investidores em menor aversão ao risco e excelentes oportunidades de negócios em energias limpas, com a perspectiva agora bastante concreta de que tais energias novas prevalecerão no longo prazo, gozando no curto prazo de grandes benefícios e incentivos públicos, o mais natural é que os fundos de investimentos procurem pousar parte dos seus recursos em bons projetos de neoidustrialização, como se chama atualmente a industrialização renovável.
Tentar adivinhar o que vai acontecer com a demanda de petróleo em 2024 é muito complicado, embora num horizonte mais longo seja certa agora a queda sustentada dessa demanda. A Agência Internacional de Energia continua trabalhando com o cenário de redução da procura, o que desagrada profundamente os países produtores de petróleo. Algo que merece destaque é que o preço do barril não tem parado de cair mesmo com a OPEP cortando bastante a produção seguidas vezes nos últimos dois anos, o que soa como sintomático do processo de mudança para uma nova era. Portanto, embora não seja possível dizer com certeza, parece mesmo que as companhias de petróleo deixaram para trás o seu melhor momento. Caso essa queda da demanda continue, é muito provável uma reversão da estratégia de cortes para ações mais agressivas de disputa de mercado, o que derrubaria ainda mais o preço do produto e, consequentemente, a rentabilidade das empresas, que teriam, assim, mais um incentivo em diversificar o seu portfólio para as energias limpas.
Em um eventual cenário mais recessivo, a perda de margem por parte da petrolíferas diminuíra suas condições de investimento. Teriam que ser mais seletivas e se preparar para a transição fazendo a transição na prática mesmo que a princípio não desejassem isso imediatamente. Abrir novos poços com a demanda em queda sustentada ou diversificar para uma demanda renovável que tende a crescer? Trata-se da resposta de bilhões ou trilhões de dólares. O certo é que ninguém vai querer morrer com o burro na mão nesse jogo, com poços que não valerão mais o que um dia já valeram. E quanto mais o tempo passar agora, maior será esse dilema. Os preços da energia em queda permitiriam à Europa acelerar sua transição energética, dificultada exatamente pelo choque do petróleo e gás natural decorrente da guerra na Ucrânia. Uma Europa menos pressionada tem força suficiente para puxar demanda considerável pelos produtos de hidrogênio verde nos próximos anos.
Por outro lado, se as empresas de petróleo ficaram simplesmente paradas, por escolha ou por falta de recursos, elas correm sério risco de perder oportunidades que não recuperarão mais, bem como nichos de mercado para concorrentes renováveis, que certamente preencherão os espaços vazios. Uma desaceleração das economias pode ser um facilitador da transição energética já que a rentabilidade do petróleo cai ainda mais, sobretudo se a OPEP não suportar mais manter a política de cortes e partir para a desova de estoque em algum momento futuro. Menos juros, dólar mais barato, liquidação do petróleo e crescimento das bolsas constroem um cenário pró-transição e alavancagem. E se o quadro econômico piorar demais, nada melhor do que o lançamento de planos de renovação da indústria verde para reaquecer as engrenagens do capitalismo. Os EUA partiram na frente nessa agenda, e seus setores econômicos de energia sustentável já crescem mais do que os tradicionais fósseis.
Publicado em 15/12/2023